O direito a não casar (2)
Os grandes casamentos comportam uma dose substancial de hábito e de medo da tragédia. O hábito (e a rotina, inimiga fatal dos "modernos") associa-se ao medo da tragédia e acomodam-se ambos para prolongar a existência e para se protegerem das incongruências do destino. Eu, se tivesse uma leve ideia do que fosse a humildade, esse bem inestimável e cada vez mais raro na pátria, nem falaria do casamento – uma vez que nunca lhe experimentei as virtudes nem os horrores – nem utilizaria esta linguagem que chocaria o velho Doutor Homem, meu pai, habituado à grandeza dos clássicos e ao rigor do romance inglês. Mas, ao fim de tantos anos da vida tranquila na província, acabo por ser tocado pelo mal do génio português que tanto fala do que não entende como mascara a ignorância com ditirambos de estilo. Camilo Castelo Branco, que me vigia das estantes como uma consciência maltratada, mencionou uma e outra vez os seus bigodes tingidos por atentados do estilo – eu limito-me a pedir perdão ao leitor, que é benevolente e conhece os efeitos provocados pela idade.
Foi Dona Ester, minha mãe, que me lembrou de que não era necessário eu casar. "Para infelicidade, já basta a que sabemos", rematou ela antes de me recambiar para o Tamariz, onde – durante um Verão suave e melancólico – me curei de um desgosto de amor. Nesse tempo havia desgostos, alguns profundos, abissais, catastróficos, mas ainda não se tinha descoberto a existência da "depressão". O que tinha um efeito, teria uma causa; e esta era sempre visível ou arquivada na categoria dos devaneios místicos, a que éramos pouco dados paredes dentro.
O Tamariz dessa época (o de hoje não conheço) pareceu-me um sanatório adequado para o mal que me fora diagnosticado e, como Hans Castorp em 'A Montanha Mágica', o infindável e aborrecido romance de Thomas Mann, limitei-me a seguir as prescrições médicas: sol e banhos de mar durante a manhã, esplanadas durante a tarde e roupas elegantes ao jantar – o egoísmo natural triunfou sobre o sentimento. Indiferente ao meu sotaque do Norte, o Estoril dos anos cinquenta era o nosso paraíso cosmopolita. Esse cenário despertou-me do meu estádio macambúzio e aproximou-me da glória mundana. Quando regressei à pátria dos meus avós, tinha atingido o propósito de D. Ester: apresentei-me bronzeado e disponível para discutir com a eternidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 7 Setembro 2008
Foi Dona Ester, minha mãe, que me lembrou de que não era necessário eu casar. "Para infelicidade, já basta a que sabemos", rematou ela antes de me recambiar para o Tamariz, onde – durante um Verão suave e melancólico – me curei de um desgosto de amor. Nesse tempo havia desgostos, alguns profundos, abissais, catastróficos, mas ainda não se tinha descoberto a existência da "depressão". O que tinha um efeito, teria uma causa; e esta era sempre visível ou arquivada na categoria dos devaneios místicos, a que éramos pouco dados paredes dentro.
O Tamariz dessa época (o de hoje não conheço) pareceu-me um sanatório adequado para o mal que me fora diagnosticado e, como Hans Castorp em 'A Montanha Mágica', o infindável e aborrecido romance de Thomas Mann, limitei-me a seguir as prescrições médicas: sol e banhos de mar durante a manhã, esplanadas durante a tarde e roupas elegantes ao jantar – o egoísmo natural triunfou sobre o sentimento. Indiferente ao meu sotaque do Norte, o Estoril dos anos cinquenta era o nosso paraíso cosmopolita. Esse cenário despertou-me do meu estádio macambúzio e aproximou-me da glória mundana. Quando regressei à pátria dos meus avós, tinha atingido o propósito de D. Ester: apresentei-me bronzeado e disponível para discutir com a eternidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 7 Setembro 2008
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