Biografia de um cronista atrasado no envio
Já lá vai o tempo que dona Elaine partia para a estação de correios de Moledo com as cinco folhas de papel branco destinadas ao fax. A minha sobrinha Maria Luísa insistia para que instalasse um computador na biblioteca e poupasse, em Lisboa, o trabalho de decifrar a letra do candidato a cronista, desenhada com a 'Parker' que pertencera ao velho doutor Homem, meu pai, e que herdei como um vício e uma recordação. O tempo passou sobre esse dia em que ameacei a vaidade dos meus antepassados com uma vaidade ainda maior, a de escrever parte das minhas memórias.
Um velho apenas tem memórias – a sua visão do futuro é um repositório de prováveis acontecimentos do passado, nem sempre confirmados. Desde então, a 'Parker' não foi ainda substituída. Ocasionalmente, à segunda-feira pela tarde, D. Vera telefona da revista perguntando pelo clima de Moledo, tentando não dar a entender-me que estou atrasado no envio; de qualquer modo, reconheço que ela tem um genuíno interesse por Moledo, que acha uma praia geminada com a sua Ericeira – por onde um antepassado dos Homem partiu de barco na companhia da última família real em direcção ao exílio; no Minho, o facto foi considerado relativamente honroso, mas amiúde fala-se dele como uma relativa traição, razão por que o retrato do senhor D. Miguel continua pendurado no casarão de Ponte de Lima, tão sombrio como os freixos e choupos que amenizam o jardim abandonado.
Mesmo com as abissais diferenças entre a Ericeira e Moledo (que o nevoeiro comum não ajuda a dissipar), D. Vera termina sempre os nossos diálogos com um "tem de vir à Ericeira" e com a minha promessa de aceitar o convite – ambos sabemos que é impossível: mal ultrapasso as minhas fronteiras (que ao sul se estendem entre a ponte de Viana e a Senhora da Agonia e que ao norte entram por La Guardia e Santa Tecla, mas terminam sempre para lá de Corcubión) sinto-me obrigado a usar passaporte. Não um passaporte real, que identifique uma nacionalidade — mas um papel imaginário que me defende da própria idade.
Quando os avisos de D. Vera não bastam, o dr. Camacho telefona então para – ah, se ele soubesse o que é a vaidade! - conversar, com jovialidade, sobre a crónica anterior, explicando que o seu pai também se recorda de um ou outro pormenor histórico do texto. A maioria dos meus leitores, ao comentar as minhas crónicas, refere sempre os pais e os avós, devolvendo-me ao século XIX; não tenho grande sucesso entre os meus condiscípulos, essa é a verdade. À guisa de conclusão, o director da revista informa-me de que esteve em Esposende (de uma das vezes enganou-se e mencionou Harare ou Joanesburgo) e informa que o dr. Pombeiro, que recebe, interpreta e clarifica os meus faxes – e que geralmente é o primeiro dos meus leitores –, "está mesmo aqui ao lado e manda cumprimentos". O que significa aquela evidência desastrosa: estou atrasado no envio da crónica e o dr. Pombeiro, na sua imensa delicadeza, treme que nem varas verdes.
Supus, durante algum tempo, que a maior parte dos telefonemas (como já acontecia no tempo da dra. Mónica Bello) se devia a uma hipocondria colectiva, com toda a gente a interessar-se pela minha saúde, que, nesses anos iniciais da minha biografia como cronista, era apenas assaltada por gripes e horários certos para tomar os comprimidos. Desenganei-me. Havia ali simpatia sincera, que eu agradeço, mas havia sobretudo o essencial da vida de um cronista: o prazo. O prazo é a realidade fundamental do cronista, escreva ele sobre o que escrever.
A minha sobrinha, que colige as minhas crónicas e que um dia as entregou ao dr. Manuel Alberto Valente para publicação na sua editora (do que mais gostei foi aquele retrato do príncipe na capa), pergunta-me frequentemente sobre que assunto vou eu escrever "esta semana". "Até segunda à hora de almoço", respondo invariavelmente. A essa hora, ela está – em Braga — tratando da vida dos ricos; na revista, suponho, um relógio invisível ilumina-se sobre as preocupações do dr. Pombeiro e de D. Vera, alertando-os para "o prazo"; em Moledo cai uma estranha paz depois do fim-de-semana em que uma certa percentagem de população do Porto aparece de visita; e à minha mesa, rodeado de inutilidades, a vaidade manda-me escrever. É isto a vida de um cronista.
in Revista Notícias Sábado – 13 Janeiro 2007
Um velho apenas tem memórias – a sua visão do futuro é um repositório de prováveis acontecimentos do passado, nem sempre confirmados. Desde então, a 'Parker' não foi ainda substituída. Ocasionalmente, à segunda-feira pela tarde, D. Vera telefona da revista perguntando pelo clima de Moledo, tentando não dar a entender-me que estou atrasado no envio; de qualquer modo, reconheço que ela tem um genuíno interesse por Moledo, que acha uma praia geminada com a sua Ericeira – por onde um antepassado dos Homem partiu de barco na companhia da última família real em direcção ao exílio; no Minho, o facto foi considerado relativamente honroso, mas amiúde fala-se dele como uma relativa traição, razão por que o retrato do senhor D. Miguel continua pendurado no casarão de Ponte de Lima, tão sombrio como os freixos e choupos que amenizam o jardim abandonado.
Mesmo com as abissais diferenças entre a Ericeira e Moledo (que o nevoeiro comum não ajuda a dissipar), D. Vera termina sempre os nossos diálogos com um "tem de vir à Ericeira" e com a minha promessa de aceitar o convite – ambos sabemos que é impossível: mal ultrapasso as minhas fronteiras (que ao sul se estendem entre a ponte de Viana e a Senhora da Agonia e que ao norte entram por La Guardia e Santa Tecla, mas terminam sempre para lá de Corcubión) sinto-me obrigado a usar passaporte. Não um passaporte real, que identifique uma nacionalidade — mas um papel imaginário que me defende da própria idade.
Quando os avisos de D. Vera não bastam, o dr. Camacho telefona então para – ah, se ele soubesse o que é a vaidade! - conversar, com jovialidade, sobre a crónica anterior, explicando que o seu pai também se recorda de um ou outro pormenor histórico do texto. A maioria dos meus leitores, ao comentar as minhas crónicas, refere sempre os pais e os avós, devolvendo-me ao século XIX; não tenho grande sucesso entre os meus condiscípulos, essa é a verdade. À guisa de conclusão, o director da revista informa-me de que esteve em Esposende (de uma das vezes enganou-se e mencionou Harare ou Joanesburgo) e informa que o dr. Pombeiro, que recebe, interpreta e clarifica os meus faxes – e que geralmente é o primeiro dos meus leitores –, "está mesmo aqui ao lado e manda cumprimentos". O que significa aquela evidência desastrosa: estou atrasado no envio da crónica e o dr. Pombeiro, na sua imensa delicadeza, treme que nem varas verdes.
Supus, durante algum tempo, que a maior parte dos telefonemas (como já acontecia no tempo da dra. Mónica Bello) se devia a uma hipocondria colectiva, com toda a gente a interessar-se pela minha saúde, que, nesses anos iniciais da minha biografia como cronista, era apenas assaltada por gripes e horários certos para tomar os comprimidos. Desenganei-me. Havia ali simpatia sincera, que eu agradeço, mas havia sobretudo o essencial da vida de um cronista: o prazo. O prazo é a realidade fundamental do cronista, escreva ele sobre o que escrever.
A minha sobrinha, que colige as minhas crónicas e que um dia as entregou ao dr. Manuel Alberto Valente para publicação na sua editora (do que mais gostei foi aquele retrato do príncipe na capa), pergunta-me frequentemente sobre que assunto vou eu escrever "esta semana". "Até segunda à hora de almoço", respondo invariavelmente. A essa hora, ela está – em Braga — tratando da vida dos ricos; na revista, suponho, um relógio invisível ilumina-se sobre as preocupações do dr. Pombeiro e de D. Vera, alertando-os para "o prazo"; em Moledo cai uma estranha paz depois do fim-de-semana em que uma certa percentagem de população do Porto aparece de visita; e à minha mesa, rodeado de inutilidades, a vaidade manda-me escrever. É isto a vida de um cronista.
in Revista Notícias Sábado – 13 Janeiro 2007
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