A 'haute saison'
Os domingos de Moledo, durante o Inverno, não mostram nem uma pequena parte da grandiosidade da 'haute saison'. Houve um período áureo de Moledo – quando a província existia e existiam hábitos. Era a "saison", o Verão, a época balnear, os encontros sazonais diante da pequena amostra de beleza local – o cume de Santa Tecla e a ínsua de um lado, o areal que prolonga a praia de outro. Em boa medida, eram estes os pontos cardeais de Moledo quando o Verão se aproximava. Ou seja, valha a verdade, quando se aproximava a 'haute saison'.
A minha sobrinha acha isto ignóbil e 'snob', mas o uso da expressão justifica-se uma vez por outra. Ela também me acha um anti-romântico impenitente e sem remissão, que há-de cruzar as portas do Além à procura de um motivo de sarcasmo. Expliquei, à minha maneira, que existe uma elevadíssima arte
- a da ironia. A minha vaidade é bastante para saber que existe; mas um resto de bom senso impede-me de julgá-la entre as minhas aptidões. Maria Luísa vê as coisas de outro modo e atribui à ironia (bem como ao sarcasmo, que é uma coisa inteiramente diferente) defeitos incomensuráveis próprios das classes que, na sua irresponsabilidade social, não foram morigeradas pelos sentimentos mais pios ou misericordiosos. Ora, o humor é um bem inestimável num mundo agreste e aborrecido por diversos males – desde os naturais (entre eles incluo os problemas das coronárias, o reumatismo ou o Alzheimer) aos que se criam para tornar a nossa vida uma espécie de purgatório ou, à falta de conhecimentos teológicos, uma antecâmara do sofrimento eterno.
Ironia e humor são elementos fundamentais da arte de viver; valem-nos na tristeza e afastam-nos do crepúsculo de Inverno. Com a idade e, portanto, com a proximidade do fim, habituei-me a desejar o Verão ou a doce melancolia da nossa Primavera minhota – mais do que a aceitar a inevítabilidade do Inverno. Devia ser ao contrário; mas não é. Em vez de ter aprendido a conformar-me, explicando a mim mesmo que o Inverno se prolonga pelos meses da ordem, "fico a cismar" (a expressão é de dona Elaine, a governanta de Moledo) na chegada do Verão e da 'haute saison'.
Para não contrariar os desígnios da natureza, contento-me em observar que o frio tem algumas vantagens para a saúde, para o restabelecimento das ervas do jardim e até para a vida familiar. O argumento convence-me, como é de esperar numa alma conservadora, mas os domingos de Inverno continuam a não mostrar nem uma parte da grandiosidade dos fins-de-semana estivais. Nas ruas de Moledo podaram e cortaram as ramagens dos plátanos e de duas buganvílias que também hibernaram. Uma poeira de frio cobre os trilhos das dunas onde já houve garças. Há uma nudez que comove os poetas e entristece os velhos, a quem o tempo não mostra piedade.
Portanto, nada a fazer, por mais que me declare vencido pelos elementos, pelo clima e pela ordem das coisas. Já expliquei ao leitor que, chegado a esta idade, tendo dobrado os oitenta, a promessa essencial da minha vida consiste em ultrapassar cada estação do ano, sobrevivendo como puder. "O tio devia ir até às Caraíbas", sugeriu um dos meus sobrinhos (que agora é arquitecto, como já contei) depois de escutar esta arenga. "Os trópicos fazem bem a toda a gente." A ideia de ver um matusalém minhoto partir, a meio do Inverno europeu, para os paraísos equatoriais – se fosse possível – seria uma das imagens que divertiria a família para o resto da sua história, embora tivesse a vantagem de talvez fazer ressuscitar a tia Benedita, arrancando-a do Além com tamanho choque.
Os Homem pertencem a este Inverno miúdo de província, quase temperado – mas nada os impede de protestar, como é a sua natureza. Temos a nostalgia da 'haute saison' (e também isso é da nossa natureza), de um certo esplendor da vida, de um resto de glória. O Inverno, às vezes, é apenas um obstáculo. Delicioso e inevitável, mas um obstáculo.
O velho doutor Homem, meu pai, usava um boné irlandês durante o Inverno. Explicava que para tudo, desde um requerimento nos tribunais até à travessia do Inverno, é necessário algum estilo.
in Revista Notícias Sábado – 27 Janeiro 2007
A minha sobrinha acha isto ignóbil e 'snob', mas o uso da expressão justifica-se uma vez por outra. Ela também me acha um anti-romântico impenitente e sem remissão, que há-de cruzar as portas do Além à procura de um motivo de sarcasmo. Expliquei, à minha maneira, que existe uma elevadíssima arte
- a da ironia. A minha vaidade é bastante para saber que existe; mas um resto de bom senso impede-me de julgá-la entre as minhas aptidões. Maria Luísa vê as coisas de outro modo e atribui à ironia (bem como ao sarcasmo, que é uma coisa inteiramente diferente) defeitos incomensuráveis próprios das classes que, na sua irresponsabilidade social, não foram morigeradas pelos sentimentos mais pios ou misericordiosos. Ora, o humor é um bem inestimável num mundo agreste e aborrecido por diversos males – desde os naturais (entre eles incluo os problemas das coronárias, o reumatismo ou o Alzheimer) aos que se criam para tornar a nossa vida uma espécie de purgatório ou, à falta de conhecimentos teológicos, uma antecâmara do sofrimento eterno.
Ironia e humor são elementos fundamentais da arte de viver; valem-nos na tristeza e afastam-nos do crepúsculo de Inverno. Com a idade e, portanto, com a proximidade do fim, habituei-me a desejar o Verão ou a doce melancolia da nossa Primavera minhota – mais do que a aceitar a inevítabilidade do Inverno. Devia ser ao contrário; mas não é. Em vez de ter aprendido a conformar-me, explicando a mim mesmo que o Inverno se prolonga pelos meses da ordem, "fico a cismar" (a expressão é de dona Elaine, a governanta de Moledo) na chegada do Verão e da 'haute saison'.
Para não contrariar os desígnios da natureza, contento-me em observar que o frio tem algumas vantagens para a saúde, para o restabelecimento das ervas do jardim e até para a vida familiar. O argumento convence-me, como é de esperar numa alma conservadora, mas os domingos de Inverno continuam a não mostrar nem uma parte da grandiosidade dos fins-de-semana estivais. Nas ruas de Moledo podaram e cortaram as ramagens dos plátanos e de duas buganvílias que também hibernaram. Uma poeira de frio cobre os trilhos das dunas onde já houve garças. Há uma nudez que comove os poetas e entristece os velhos, a quem o tempo não mostra piedade.
Portanto, nada a fazer, por mais que me declare vencido pelos elementos, pelo clima e pela ordem das coisas. Já expliquei ao leitor que, chegado a esta idade, tendo dobrado os oitenta, a promessa essencial da minha vida consiste em ultrapassar cada estação do ano, sobrevivendo como puder. "O tio devia ir até às Caraíbas", sugeriu um dos meus sobrinhos (que agora é arquitecto, como já contei) depois de escutar esta arenga. "Os trópicos fazem bem a toda a gente." A ideia de ver um matusalém minhoto partir, a meio do Inverno europeu, para os paraísos equatoriais – se fosse possível – seria uma das imagens que divertiria a família para o resto da sua história, embora tivesse a vantagem de talvez fazer ressuscitar a tia Benedita, arrancando-a do Além com tamanho choque.
Os Homem pertencem a este Inverno miúdo de província, quase temperado – mas nada os impede de protestar, como é a sua natureza. Temos a nostalgia da 'haute saison' (e também isso é da nossa natureza), de um certo esplendor da vida, de um resto de glória. O Inverno, às vezes, é apenas um obstáculo. Delicioso e inevitável, mas um obstáculo.
O velho doutor Homem, meu pai, usava um boné irlandês durante o Inverno. Explicava que para tudo, desde um requerimento nos tribunais até à travessia do Inverno, é necessário algum estilo.
in Revista Notícias Sábado – 27 Janeiro 2007
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