Amores impossíveis
O ramo ultramontano dos Homem esteve sempre agastado com o derradeiro rei português, mesmo quando este foi obrigado pelas circunstâncias a apoiar um Paiva Couceiro nitidamente alheado da realidade. Quando os esfarrapados – e esfomeados – do caudilho entraram em Vinhais, julgando que a República ia cair diante da sua marcha, dois primos dos arredores enviaram-lhe fruta, dinheiro, dois presuntos e creio que um almude de vinho (que era mau), mas advertiram o antigo capitão do reino e africanista de que o povo agora era republicano de raiz, como antes dera vivas a liberais e a legítimistas ou correra a festejar o hino da Carta. Um ano depois, Couceiro talvez recordasse o aviso quando a incursão de Chaves foi desbaratada por meia dúzia de militares e um grupo dos chamados “voluntários”, conhecidos por perseguirem padres e obrigarem as burguesias e os funcionários municipais a dar vivas à República.
Os Homem nunca ficaram convencidos; mas os peregrinos de Ponte de Lima, onde entravam para venerar o retrato do senhor D. Miguel, sempre tinham avisado que o último rei estava em Londres a tratar da vida enquanto os patriotas gemiam como o Zeferino das Lamelas da 'Brasileira de Prazins', suspirando pelo regresso do monarca mais do que de amores contrariados. Os Homem, vale a pena dizer, viviam com desprendimento geral; mantinham as suas convicções mas sabiam que a vida corria depressa, que um ano vem depois do outro e que o "bem bom" é coisa de dois instantes – um para começar, outro por acabar.
Este pragmatismo não é inocente. A minha sobrinha Maria Luísa desconhecia as aventuras cosmopolitas dos Homem dessa época, julgando que só depois dos anos sessenta se tinham aberto as fronteiras para que fôssemos além de Valença ou de Vilar Formoso. O velho doutor Homem, meu pai, habituou-nos a viajar no banco de trás de um vetustíssimo Plymouth e a entrar em hotéis para que apreciássemos o mundo na altura em que havia charme para malbaratar. Fugindo de Biarritz, que teve uma época de dependência da Foz do Douro, atravessámos os Pirinéus para ver como se vestia a civilização; vestia-se confortavelmente, era educada, rica e vivia no desperdício.
Ela, que vive em Braga (comparando com Moledo, é como se vivesse no centro da civilização), ficou espantada com a revelação, nesta página, dos amores do tio Alfredo para lá da Cortina de Ferro quando ainda não havia Cortina de Ferro, às margens do mar Negro, num período em que conheceu a Pérsia, o Cáspio e o gelo das estepes. Da senhora, uma jovem que tinha mais de parisiense do que de russa – diz-se que os seus primos, cossacos ricos, desapareceram com o vendaval do comunismo –, conserva-se uma fotografia nos anais da família, mais como testemunho do expansionismo sentimental dos Homem do que como prova de uma intimidade que não chegou a existir entre a família minhota e os representantes do Cáucaso.
Nessa altura, o tio Alfredo entrava nos quarenta anos e vivia de negócios. Viver de negócios significava sempre um certo anonimato nos anais familiares. A expressão "viver de negócios" nunca foi mal olhada pelos Homem, que sabiam o preço das coisas e não foram tidos nem achados nos baronatos do constitucionalismo nem nas recompensas de antes do cartismo. O velho doutor Homem, meu pai, seguiu uma das tradições da família, dedicando-se às leis, mas, aproveitando uma sugestão do tio Alfredo, conheceu as atribulações do direito bancário.
Seja como for, a senhora, que a tia Benedita tratava por Esbelta (nunca conseguiu pronunciar qualquer palavra noutro idioma), mas cujo nome de baptismo era Svetlana, transportou para a família uma beleza oriental surpreendente, que contribuiu para a crença — vulgar na época – de que as mulheres mais bonitas eram inacessíveis, até por motivos geográficos. Svetlana, que nunca esteve em Portugal, nem por isso deixou de ser esquecida nas orações da tia Benedita, que rezava pela conversão da Rússia – e para quem a leste de Roma só existiam barbárie e labaredas vindas do inferno. Ela nunca foi sensível à beleza das outras mulheres, um atributo que achava pouco útil nas minúcias do seu catecismo. Por isso, tinha muita pena do capitão Paiva Couceiro, sonhador, hirto e ingénuo no seu uniforme coçado. Ele era muito amado pelas mulheres. Mas a tia Benedita era um caso à parte.
in Revista Notícias Sábado – 20 Janeiro 2007
Os Homem nunca ficaram convencidos; mas os peregrinos de Ponte de Lima, onde entravam para venerar o retrato do senhor D. Miguel, sempre tinham avisado que o último rei estava em Londres a tratar da vida enquanto os patriotas gemiam como o Zeferino das Lamelas da 'Brasileira de Prazins', suspirando pelo regresso do monarca mais do que de amores contrariados. Os Homem, vale a pena dizer, viviam com desprendimento geral; mantinham as suas convicções mas sabiam que a vida corria depressa, que um ano vem depois do outro e que o "bem bom" é coisa de dois instantes – um para começar, outro por acabar.
Este pragmatismo não é inocente. A minha sobrinha Maria Luísa desconhecia as aventuras cosmopolitas dos Homem dessa época, julgando que só depois dos anos sessenta se tinham aberto as fronteiras para que fôssemos além de Valença ou de Vilar Formoso. O velho doutor Homem, meu pai, habituou-nos a viajar no banco de trás de um vetustíssimo Plymouth e a entrar em hotéis para que apreciássemos o mundo na altura em que havia charme para malbaratar. Fugindo de Biarritz, que teve uma época de dependência da Foz do Douro, atravessámos os Pirinéus para ver como se vestia a civilização; vestia-se confortavelmente, era educada, rica e vivia no desperdício.
Ela, que vive em Braga (comparando com Moledo, é como se vivesse no centro da civilização), ficou espantada com a revelação, nesta página, dos amores do tio Alfredo para lá da Cortina de Ferro quando ainda não havia Cortina de Ferro, às margens do mar Negro, num período em que conheceu a Pérsia, o Cáspio e o gelo das estepes. Da senhora, uma jovem que tinha mais de parisiense do que de russa – diz-se que os seus primos, cossacos ricos, desapareceram com o vendaval do comunismo –, conserva-se uma fotografia nos anais da família, mais como testemunho do expansionismo sentimental dos Homem do que como prova de uma intimidade que não chegou a existir entre a família minhota e os representantes do Cáucaso.
Nessa altura, o tio Alfredo entrava nos quarenta anos e vivia de negócios. Viver de negócios significava sempre um certo anonimato nos anais familiares. A expressão "viver de negócios" nunca foi mal olhada pelos Homem, que sabiam o preço das coisas e não foram tidos nem achados nos baronatos do constitucionalismo nem nas recompensas de antes do cartismo. O velho doutor Homem, meu pai, seguiu uma das tradições da família, dedicando-se às leis, mas, aproveitando uma sugestão do tio Alfredo, conheceu as atribulações do direito bancário.
Seja como for, a senhora, que a tia Benedita tratava por Esbelta (nunca conseguiu pronunciar qualquer palavra noutro idioma), mas cujo nome de baptismo era Svetlana, transportou para a família uma beleza oriental surpreendente, que contribuiu para a crença — vulgar na época – de que as mulheres mais bonitas eram inacessíveis, até por motivos geográficos. Svetlana, que nunca esteve em Portugal, nem por isso deixou de ser esquecida nas orações da tia Benedita, que rezava pela conversão da Rússia – e para quem a leste de Roma só existiam barbárie e labaredas vindas do inferno. Ela nunca foi sensível à beleza das outras mulheres, um atributo que achava pouco útil nas minúcias do seu catecismo. Por isso, tinha muita pena do capitão Paiva Couceiro, sonhador, hirto e ingénuo no seu uniforme coçado. Ele era muito amado pelas mulheres. Mas a tia Benedita era um caso à parte.
in Revista Notícias Sábado – 20 Janeiro 2007
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