Gostar do velho ano
Na minha juventude, o ano 2000 era uma ilusão pecaminosa; só de invocar o número ficava-se ligeiramente arrogante e desafiador, a um passo da eternidade – ou um pouco deprimido, quando a data era muito longínqua. Havia outras metas: chegar aos cinquenta anos num mundo cheio de tuberculose, sarampo e novos costumes, se bem que a devassidão fosse o menor dos nossos males. Os Homem sempre lidaram bem com o fenómeno.
Agora, que entro em 2007, tenho uma sensação discreta de vergonha; agradeço estar vivo. Ultrapassei as metas que a minha geração desenhou na sua adolescência e nos primeiros anos da maturidade. Vivi revoluções, se bem que, pelo facto de serem portuguesas, nunca ultrapassaram a mediania em matéria de risco, sem massacres nem mortandades entre os dirigentes – apenas contando com o favor habitual das multidões desordenadas. Contornei a maior parte das minhas doenças com cuidados suspeitos e com desinteresse. Não me livrei de muitos dos males de espírito que me atormentaram, mas não os valorizei para que me não pegassem de surpresa. Reuni na minha biblioteca os livros que sempre quis ler antes de entrar em cada Ano Novo assinalado depois dos setenta.
O velho Doutor Homem, meu pai, desdenhava do hábito de sacrificar todas as esperanças no altar do Novo Ano – achava incongruente os festejos e o optimismo, o que aconteceu depois de prestar atenção à forma como, ao longo da história, se foram falsificando e modificando os calendários e a forma de contar o tempo. Depois de ter lido todo o Burke disponível (o que, confesso, o indispôs contra o género humano durante algum tempo, em razão de haver livros benéficos e livros prejudiciais à saúde) voltou-se contra as revoluções e as comemorações das grandes datas históricas. Nada que não esperássemos numa família que guardava o retrato do senhor D. Miguel como uma das suas pequenas relíquias.
Como é habitual, os que vêm a Moledo para a passagem de ano entretêm-se a jogar sueca até ser meia-noite. É, provavelmente, um ritual de misantropia, dado que o jogo se destina a matar o tempo até ser altura de beber o champanhe do primeiro minuto do novo ano – e continua depois da meia-noite para que nos não gastemos em comemorações antecipadas. A sueca e a bisca são duas concessões ao que a minha sobrinha Maria Luísa chama “o espírito minhoto”. Ela saberá porquê. Dia 1 de Janeiro a manhã começa tarde, portanto, excepto para Dona Elaine (que gosta de não atrasar o assado que se tornou habitual nos almoços de família) e para mim, que venho à varanda e desço os três lances de escada até ao jardim mais desorganizado do distrito de Viana do Castelo, para conferir a chegada do novo ano sob uma fina camada de nevoeiro.
O Ano Velho é malquisto de quase toda a gente. Passa-se isso com quase tudo o que leva a palavra “velho” (talvez tirando a “roupa velha”, uma primícia gastronómica que ainda continua a praticar-se). A ideia do Portugal Novo contra o Portugal Velho é uma dessas ocorrências que, com o tempo, acabam por ser ligeiramente desastrosas. A nossa família (e aí tem razão a minha sobrinha) corresponde em quase tudo ao Portugal Velho, frente ao Portugal Novo que está em todo o lado. Nos humedecidos arquivos de Ponte de Lima encontram-se alguns exemplares dessa folha política dos anos trinta do século XIX, o “Portugal Velho”, precisamente. Lê-se correntemente que Évora Monte veio pôr fim ao Portugal Velho e, de repente, substituí-lo pelo Portugal Novo com a assinatura da Convenção. Assim pudesse ter sido, e poupar-se-iam muitas perseguições e injustiças. Mas os caminhos são sempre atribulados e cheios de vítimas. Chegados aqui, o leitor pensa, e bem, que eu não tenho de gastar a página em aulas de História Pátria.
Com o tempo ficámos todos satisfeitos com a ideia de um Portugal Novo, tal como a generalidade das pessoas prefere o Ano Novo ao Ano Velho. Infelizmente para elas, e satisfazendo o meu cepticismo, o Ano Novo não traz uma vida nova mas apenas uma mudança no calendário – quando eu era novo, o champanhe tornava-me a vista mais turva; hoje, é apenas um sabor agradável, mas gosto de recordar ambas as coisas.
in Revista Notícias Sábado – 6 Janeiro 2007
Agora, que entro em 2007, tenho uma sensação discreta de vergonha; agradeço estar vivo. Ultrapassei as metas que a minha geração desenhou na sua adolescência e nos primeiros anos da maturidade. Vivi revoluções, se bem que, pelo facto de serem portuguesas, nunca ultrapassaram a mediania em matéria de risco, sem massacres nem mortandades entre os dirigentes – apenas contando com o favor habitual das multidões desordenadas. Contornei a maior parte das minhas doenças com cuidados suspeitos e com desinteresse. Não me livrei de muitos dos males de espírito que me atormentaram, mas não os valorizei para que me não pegassem de surpresa. Reuni na minha biblioteca os livros que sempre quis ler antes de entrar em cada Ano Novo assinalado depois dos setenta.
O velho Doutor Homem, meu pai, desdenhava do hábito de sacrificar todas as esperanças no altar do Novo Ano – achava incongruente os festejos e o optimismo, o que aconteceu depois de prestar atenção à forma como, ao longo da história, se foram falsificando e modificando os calendários e a forma de contar o tempo. Depois de ter lido todo o Burke disponível (o que, confesso, o indispôs contra o género humano durante algum tempo, em razão de haver livros benéficos e livros prejudiciais à saúde) voltou-se contra as revoluções e as comemorações das grandes datas históricas. Nada que não esperássemos numa família que guardava o retrato do senhor D. Miguel como uma das suas pequenas relíquias.
Como é habitual, os que vêm a Moledo para a passagem de ano entretêm-se a jogar sueca até ser meia-noite. É, provavelmente, um ritual de misantropia, dado que o jogo se destina a matar o tempo até ser altura de beber o champanhe do primeiro minuto do novo ano – e continua depois da meia-noite para que nos não gastemos em comemorações antecipadas. A sueca e a bisca são duas concessões ao que a minha sobrinha Maria Luísa chama “o espírito minhoto”. Ela saberá porquê. Dia 1 de Janeiro a manhã começa tarde, portanto, excepto para Dona Elaine (que gosta de não atrasar o assado que se tornou habitual nos almoços de família) e para mim, que venho à varanda e desço os três lances de escada até ao jardim mais desorganizado do distrito de Viana do Castelo, para conferir a chegada do novo ano sob uma fina camada de nevoeiro.
O Ano Velho é malquisto de quase toda a gente. Passa-se isso com quase tudo o que leva a palavra “velho” (talvez tirando a “roupa velha”, uma primícia gastronómica que ainda continua a praticar-se). A ideia do Portugal Novo contra o Portugal Velho é uma dessas ocorrências que, com o tempo, acabam por ser ligeiramente desastrosas. A nossa família (e aí tem razão a minha sobrinha) corresponde em quase tudo ao Portugal Velho, frente ao Portugal Novo que está em todo o lado. Nos humedecidos arquivos de Ponte de Lima encontram-se alguns exemplares dessa folha política dos anos trinta do século XIX, o “Portugal Velho”, precisamente. Lê-se correntemente que Évora Monte veio pôr fim ao Portugal Velho e, de repente, substituí-lo pelo Portugal Novo com a assinatura da Convenção. Assim pudesse ter sido, e poupar-se-iam muitas perseguições e injustiças. Mas os caminhos são sempre atribulados e cheios de vítimas. Chegados aqui, o leitor pensa, e bem, que eu não tenho de gastar a página em aulas de História Pátria.
Com o tempo ficámos todos satisfeitos com a ideia de um Portugal Novo, tal como a generalidade das pessoas prefere o Ano Novo ao Ano Velho. Infelizmente para elas, e satisfazendo o meu cepticismo, o Ano Novo não traz uma vida nova mas apenas uma mudança no calendário – quando eu era novo, o champanhe tornava-me a vista mais turva; hoje, é apenas um sabor agradável, mas gosto de recordar ambas as coisas.
in Revista Notícias Sábado – 6 Janeiro 2007
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