Assuntos da Pátria
Um dos grandes assuntos portugueses versa o assunto da violência. Somos ou não gente de brandos costumes? A expressão é deficiente e falta-lhe sentido. Para sermos gente de brandos costumes necessitávamos de ser gente com costumes e, pelo menos vista de Moledo, a Pátria está sem eles; não é uma falta grave, bem vistas as coisas, porque se sobrevive bem, assistindo pela televisão ao 'Prós e Contras' e desligando-a sempre que se vê uma telenovela portuguesa.
A questão das telenovelas tenho-a sobretudo com Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, que me faz perguntas descabidas acerca dos costumes que vê na televisão, à hora a que as famílias deviam dedicar-se já não sei a quê. Dona Elaine, que aproveita o facto de em casa se jantar relativamente cedo para poder regalar-se com pelo menos duas telenovelas, acha aquilo uma pouca-vergonha. Reconheço-lhe alguma razão, embora nunca tenha visto um episódio inteiro depois de assistir aos últimos capítulos de 'Gabriela Cravo e Canela'. O defeito é meu.
O velho doutor Homem, meu pai, assinalava o hábito duvidoso de haver teatro dito em português, que o causídico considerava uma língua imprópria para registar acontecimentos. Ele achava que de Fernão Lopes até à imprensa pós-25 de Abril (ele sobreviveu oito meses à revolução), não se aprendeu no País a contar um facto simples com predicado, sujeito e complemento directo. Era exagero de certa insensatez, o que ia bem com o seu feitio teimoso. Mas quanto ao teatro tornou-se verdadeiramente abstémio, depois de se representarem peças na televisão revelando a fraqueza do idioma e a sua inadequação. Eu compreendo-o, mas desculpo o idioma, que não foi chamado à barra; tratava-se, antes, do trejeito excessivamente dramático dos nossos actores, que não deixava pedra sobre pedra da sanidade mental de um pobre homem que quisesse assistir a uma peça de teatro sem ser obrigado a meditar sobre o sentido da vida. O meu pai foi mal habituado; ele viu o grande teatro inglês. Daí em diante quase tudo lhe pareceu despropositado e perda de tempo. Na semana passada, pelo canto do olho, vi e ouvi um pouco de uma telenovela portuguesa.
Fiquei surpreendido porque supunha que o meu país não falava daquela maneira; também não imaginava que as telenovelas esbanjassem tanta vulgaridade e extravagância acerca "das relações humanas", eufemismo usado frequentemente para significar que homens e senhoras se dão bastante. Nessas ocasiões, abro um livro de Mrs. Trollope e dou graças por não sucumbir à miséria do espírito. Mas o país já não me pertence e eu ultrapassei a idade em que é aceitável ter opinião, um dos produtos portugueses de que não podemos queixar-nos, pois temo-la em abundância e largueza. No almoço deste domingo, por exemplo, o tema rondou os "brandos costumes". Antes os houvesse. Mas não. A tia Benedita especializou-se, nos anos derradeiros da sua permanente campanha contra a República e o fantasma do dr. Afonso Costa, em lembrar os episódios mais grotescos da "Noite Sangrenta" em que Abel Olímpio, o Dente de Ouro, assassinou o dr. António Granjo nos terreiros do Alfeite, empurrado pela turba radical. Naquela abundância de sangue que podia ter inaugurado o terror republicano, estaria a negação dos nossos brandos costumes. Lembrei o facto, mesmo sabendo que a matriarca da família era cruel quando se tratava da República. Como assistira ao regicídio, ao assassínio de Sidónio, à "Noite Sangrenta" e aos sermões dos missionários de Ponte de Lima e de Braga, desenvolveu um grande ressentimento contra o regime e o próprio hino. O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que isso a mantinha viva e funcionava como um antídoto contra a gota, as complicações renais e as gripes.
Não, não acredito na doutrina dos "brandos costumes". Geralmente confunde-se o clima magnânimo do extremo peninsular (esse sim, brando) com a temperança dos nossos concidadãos. O dr. Salazar viu o ponto quando submeteu o País à pobreza da sua infância e aos traumas da sua vida sexual; as suas botinas (compradas na "Saville Road de Santa Comba", como insistia o velho Doutor Homem, meu pai), que não deixavam de ser elegantes, escondiam um temperamento aborrecido que nunca abandonou verdadeiramente a Beira Alta. A sua obstinação e a sua vaidade transformaram-nos num país envergonhado. Contra isso, as telenovelas julgam que mudam o País, lá por serem "modernas"; não – apenas revelam a sua face mais embriagada e desprezível.
in Revista Notícias Sábado – 16 Dezembro 2006
A questão das telenovelas tenho-a sobretudo com Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, que me faz perguntas descabidas acerca dos costumes que vê na televisão, à hora a que as famílias deviam dedicar-se já não sei a quê. Dona Elaine, que aproveita o facto de em casa se jantar relativamente cedo para poder regalar-se com pelo menos duas telenovelas, acha aquilo uma pouca-vergonha. Reconheço-lhe alguma razão, embora nunca tenha visto um episódio inteiro depois de assistir aos últimos capítulos de 'Gabriela Cravo e Canela'. O defeito é meu.
O velho doutor Homem, meu pai, assinalava o hábito duvidoso de haver teatro dito em português, que o causídico considerava uma língua imprópria para registar acontecimentos. Ele achava que de Fernão Lopes até à imprensa pós-25 de Abril (ele sobreviveu oito meses à revolução), não se aprendeu no País a contar um facto simples com predicado, sujeito e complemento directo. Era exagero de certa insensatez, o que ia bem com o seu feitio teimoso. Mas quanto ao teatro tornou-se verdadeiramente abstémio, depois de se representarem peças na televisão revelando a fraqueza do idioma e a sua inadequação. Eu compreendo-o, mas desculpo o idioma, que não foi chamado à barra; tratava-se, antes, do trejeito excessivamente dramático dos nossos actores, que não deixava pedra sobre pedra da sanidade mental de um pobre homem que quisesse assistir a uma peça de teatro sem ser obrigado a meditar sobre o sentido da vida. O meu pai foi mal habituado; ele viu o grande teatro inglês. Daí em diante quase tudo lhe pareceu despropositado e perda de tempo. Na semana passada, pelo canto do olho, vi e ouvi um pouco de uma telenovela portuguesa.
Fiquei surpreendido porque supunha que o meu país não falava daquela maneira; também não imaginava que as telenovelas esbanjassem tanta vulgaridade e extravagância acerca "das relações humanas", eufemismo usado frequentemente para significar que homens e senhoras se dão bastante. Nessas ocasiões, abro um livro de Mrs. Trollope e dou graças por não sucumbir à miséria do espírito. Mas o país já não me pertence e eu ultrapassei a idade em que é aceitável ter opinião, um dos produtos portugueses de que não podemos queixar-nos, pois temo-la em abundância e largueza. No almoço deste domingo, por exemplo, o tema rondou os "brandos costumes". Antes os houvesse. Mas não. A tia Benedita especializou-se, nos anos derradeiros da sua permanente campanha contra a República e o fantasma do dr. Afonso Costa, em lembrar os episódios mais grotescos da "Noite Sangrenta" em que Abel Olímpio, o Dente de Ouro, assassinou o dr. António Granjo nos terreiros do Alfeite, empurrado pela turba radical. Naquela abundância de sangue que podia ter inaugurado o terror republicano, estaria a negação dos nossos brandos costumes. Lembrei o facto, mesmo sabendo que a matriarca da família era cruel quando se tratava da República. Como assistira ao regicídio, ao assassínio de Sidónio, à "Noite Sangrenta" e aos sermões dos missionários de Ponte de Lima e de Braga, desenvolveu um grande ressentimento contra o regime e o próprio hino. O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que isso a mantinha viva e funcionava como um antídoto contra a gota, as complicações renais e as gripes.
Não, não acredito na doutrina dos "brandos costumes". Geralmente confunde-se o clima magnânimo do extremo peninsular (esse sim, brando) com a temperança dos nossos concidadãos. O dr. Salazar viu o ponto quando submeteu o País à pobreza da sua infância e aos traumas da sua vida sexual; as suas botinas (compradas na "Saville Road de Santa Comba", como insistia o velho Doutor Homem, meu pai), que não deixavam de ser elegantes, escondiam um temperamento aborrecido que nunca abandonou verdadeiramente a Beira Alta. A sua obstinação e a sua vaidade transformaram-nos num país envergonhado. Contra isso, as telenovelas julgam que mudam o País, lá por serem "modernas"; não – apenas revelam a sua face mais embriagada e desprezível.
in Revista Notícias Sábado – 16 Dezembro 2006
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