sábado, dezembro 09, 2006

Coisas sem enfado

Os velhos levantam-se mais cedo por dois motivos: não só dormem menos como se recolhem mais cedo. São hábitos de anos que moldaram o carácter e as funções vitais de gerações habituadas a ritmos que, de ordinário, se destinavam a gente que trabalhava cedo, que tinha obrigações domésticas e que acreditava ser bom para a saúde cedo erguer e cedo adormecer.

Até ao aparecimento da televisão, da rádio por vinte e quatro horas, da luz eléctrica, da cafeína distribuída a rodos e dos medicamentos para dormir, os dias de antanho terminavam com aquela placidez que se atribui ao tempo dominado pelo silêncio – o meu e o dos meus avós, e por aí fora, até sermos devolvidos à criação do mundo.

Contra todas as expectativas, acho que esse tempo era enfadonho. Não triste, nem inútil, ou desagradável – apenas enfadonho. Havia crepúsculos magníficos, trovoadas que eram sublimes, demonstrações do oculto e até noites profundas e conversadoras. As grandes novidades deste tempo comovem-me um tanto, embora não as ache saudáveis ou, sequer, muito úteis. Servem, certamente, para que a nossa vida fique menos enfadonha; mas peço ao leitor que acompanhe o meu raciocínio: uma vida com sinais enfadonhos não é neces­sariamente desinteressante ou triste. A vida não tem de assemelhar-se às festas da Senhora da Agonia pressentidas dos pinhais dos arredores, nem havia pirotecnia que chegas­se. Há, portanto, um preço a pagar pelas coisas.

O velho doutor Homem, meu pai, era um dos grandes inimigos dos provérbios e da sabedoria popular, que ele achava ser como o senhor general Carmona, flutuando de acordo com as conveniências e errando nos momentos cruciais. Ele achava que era neces­sário um grande espírito de abnega­ção para se ser feliz. De abnegação e de conformismo, no fim de contas. Lançando-me (com o patrocínio esclarecido de dona Ester, minha mãe) num período de razoável futili­dade destinado a fazer esquecer males de amor e o que na altura se designava por "desencontros amoro­sos", o seu conselho foi que "apro­veitasse" - o que eu fiz -, porque a vida tinha coisas para serem aproveitadas, mas não falou em "prolongamento". Ele sabia que o 'glamour' e o devaneio amo­roso, tal como a alta velocidade a que se corre de vez em quando, eram luxos praticáveis de tempos a tempos, bons para morigerar o colesterol da paixão ou os excessos de insó­nia. Mas, ai de nós, mortais – era necessário regressar.

Hoje, dobrando aquela idade que não me transporta a mais memórias mas apenas às primeiras franjas do esquecimento, continuo a levantar-me cedo e a aproveitar a bonomia das madrugadas. É um bom momento do dia. Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, serve o pequeno-almoço a partir das sete e meia (eu apareço um pouco depois); há vinte anos que se repete, dia-a-dia, o cardápio do pequeno-almoço, tal como a sobremesa do almoço de Ano Novo. O meu médico acha que isso é um benefício para a minha saúde e eu não desminto a sua fé científica no ritmo madruga­dor, nos banhos de mar (ah, o iodo!) e nos passeios a pé pelo paredão de Moledo. No fundo, trata-se apenas de uma discipli­na que me permite ler os jornais antes das nove da manhã e escrever estas crónicas que devo terminar até segunda-feira à hora de almoço. É um ritmo como qualquer outro, adquirido por anos de insignificância.

A minha sobrinha Maria Luísa acha que em Moledo se dorme melhor; eu admito que se acorda melhor. Ela vive noutro mundo e ignora o valor do hábito, da repetição e da monotonia. Achará tudo isso, evidentemente, conservador. Na verdade, ela tem razão, embora se possa ser uma múmia conservadora acordando apenas depois de almoço. Estaline acordava pelas onze da manhã; em meu entender, isso é meio caminho para a barbárie. Mas o doutor Salazar, que era madrugador, chegou lá por outros caminhos, que, como se sabe, costumam ser insondáveis.

in Revista Notícias Sábado – 9 Dezembro 2006