Um mundo salazarista
O velho Doutor Homem, meu pai, acusava o mundo de estar cada vez mais salazarista ou, pelo menos, mais de acordo com as idiossincrasias do professor de Coimbra – o cavalheiro que, em seu entender, vestia (e calçava) na Saville Road de Santa Comba Dão ou nos alfaiates da alta (coimbrã). Herdeira da tradição miguelista, a família não achava bem o sarcasmo do causídico, mas passado o setembrismo e o cartismo, enterrado João Franco, tendo sobrevivido à República (com dificuldades acrescidas, como lembrava a Tia Benedita, matriarca dos Homem, apoiante de Paiva Couceiro e resistente à barbicha do Dr. Afonso Costa), tudo era possível. O momento fatal e definitivo, bem vistas as coisas, aconteceu no final da II Guerra, quando o governo achou que podia decretar três dias de luto nacional em memória do facínora austríaco – ou alemão, bem vistas as coisas. Aí, o velho Doutor Homem, meu pai, achou que era demais.
Ele acreditou, por instantes, que o mundo veria a luz e que os primeiros-ministros, doravante, se chamariam Winston Churchill. Tratava-se de um das suas ingenuidades, permitidas em tempo de guerra, que a família mais chegada acompanhou através de mapas estendidos na mesa da sala de jantar e sobre os quais o meu avô e o meu pai se debruçavam de óculos, verificando onde circulavam as tropas alemãs sobre o vasto território branco que era a velha Rússia. O branco da Rússia explica-se, porque não havia mapas com os países na margem direita do Báltico ou da Ásia Central, dando razão aos que pensavam que, a leste de Berlim se estendia um deserto gelado ocupado por tártaros, mongóis, pescadores de esturjão e comunistas. A excepção seria uma franja de temperatura quase moderada, à beira do Mar Negro, por onde passara um tio que, em tempos, se apaixonara por uma dama que tanto era persa como aparentada com o Czar. Não interessa.
Desiludido com a ingratidão do mundo em relação a Churchill e recusando-se a ver no antigo combatente na Índia mais do que um inglês de biografia humana e polvilhada de defeitos, o velho Doutor Homem, meu pai, aproveitou o luto nacional decretado em honra de Hitler para desertar definitivamente do regime, ao qual todos tínhamos pertencido. O meu pai vingar-se-ia, entretendo-se com ostras e presunto cozido à mesa do exilado Dr. Cunha Leal, então na Corunha. A facção ultramontana da família nunca perdoou ao velho Doutor Homem esses encontros com “o oposicionista”, invocando mesmo a palavra “apostasia” e reclamando castigo ou excomunhão ideológica. Eles não tinham aprendido a lição da falecida Tia Benedita que, informada do delírio, encolheu os ombros murmurando que o afilhado e sobrinho dilecto ia à Galiza comer polvo e ver mulheres, porque os homens seriam todos iguais, tirando o dr. Afonso Costa, que era um pouco pior.
De ilação em ilação, o velho Doutor Homem, meu pai, chegou ao triste epílogo, que era o seguinte: o ditador queria o povo sustentado a broa e batata, servindo-lhe um cálice de vinho fino de lustro a lustro, apenas para lhe lembrar que nem todas as recompensas eram divinas ou do outro mundo, como o atestaria a abundância de bacalhau, o peixe do regime, juntamente com a sardinha de barrica. De alguma maneira, tinha razão: havendo broa, sardinha e romarias da Senhora da Agonia, as razões de queixa diminuiriam. Ele estava ciente de ser injusto, porque a liberdade era um luxo.
Passados mais de cinquenta anos, o mundo continua salazarista embora, farto de samarras e cheviote, já não vista na Saville Road de Santa Comba Dão. Havendo sardinha de barrica, telemóveis, carros baratos e invenções tecnológicas, bem podem os mandarins instalar-se. No fundo, era esse o argumento do comunismo, o irmão gémeo, mas sem sotaina e cabeção, do salazarismo beirão; liberdade para quê, se havia pão na mesa?
Na semana passada, um dos meus irmãos comentou que teríamos agora um bilhete de identidade novo, onde se armazenaria toda a informação disponível sobre cada cidadão: os seus impostos e as suas doenças, as suas multas por excesso de velocidade e uma passagem pela prisão em 1975. Ele estava com dúvidas. Eu também: até agora, o meu médico das coronárias ignorava que de vez em quando a minha sobrinha me leva – nos arredores de São Miguel de Seide, onde vou em peregrinação anual celebrar Camilo e as suas penumbras – a almoçar rojões. Estão-me proibidos, mas a informação há-de entrar no “cartão único”. Estarei perdido.
in Revista Notícias Sábado – 30 Dezembro 2006
Ele acreditou, por instantes, que o mundo veria a luz e que os primeiros-ministros, doravante, se chamariam Winston Churchill. Tratava-se de um das suas ingenuidades, permitidas em tempo de guerra, que a família mais chegada acompanhou através de mapas estendidos na mesa da sala de jantar e sobre os quais o meu avô e o meu pai se debruçavam de óculos, verificando onde circulavam as tropas alemãs sobre o vasto território branco que era a velha Rússia. O branco da Rússia explica-se, porque não havia mapas com os países na margem direita do Báltico ou da Ásia Central, dando razão aos que pensavam que, a leste de Berlim se estendia um deserto gelado ocupado por tártaros, mongóis, pescadores de esturjão e comunistas. A excepção seria uma franja de temperatura quase moderada, à beira do Mar Negro, por onde passara um tio que, em tempos, se apaixonara por uma dama que tanto era persa como aparentada com o Czar. Não interessa.
Desiludido com a ingratidão do mundo em relação a Churchill e recusando-se a ver no antigo combatente na Índia mais do que um inglês de biografia humana e polvilhada de defeitos, o velho Doutor Homem, meu pai, aproveitou o luto nacional decretado em honra de Hitler para desertar definitivamente do regime, ao qual todos tínhamos pertencido. O meu pai vingar-se-ia, entretendo-se com ostras e presunto cozido à mesa do exilado Dr. Cunha Leal, então na Corunha. A facção ultramontana da família nunca perdoou ao velho Doutor Homem esses encontros com “o oposicionista”, invocando mesmo a palavra “apostasia” e reclamando castigo ou excomunhão ideológica. Eles não tinham aprendido a lição da falecida Tia Benedita que, informada do delírio, encolheu os ombros murmurando que o afilhado e sobrinho dilecto ia à Galiza comer polvo e ver mulheres, porque os homens seriam todos iguais, tirando o dr. Afonso Costa, que era um pouco pior.
De ilação em ilação, o velho Doutor Homem, meu pai, chegou ao triste epílogo, que era o seguinte: o ditador queria o povo sustentado a broa e batata, servindo-lhe um cálice de vinho fino de lustro a lustro, apenas para lhe lembrar que nem todas as recompensas eram divinas ou do outro mundo, como o atestaria a abundância de bacalhau, o peixe do regime, juntamente com a sardinha de barrica. De alguma maneira, tinha razão: havendo broa, sardinha e romarias da Senhora da Agonia, as razões de queixa diminuiriam. Ele estava ciente de ser injusto, porque a liberdade era um luxo.
Passados mais de cinquenta anos, o mundo continua salazarista embora, farto de samarras e cheviote, já não vista na Saville Road de Santa Comba Dão. Havendo sardinha de barrica, telemóveis, carros baratos e invenções tecnológicas, bem podem os mandarins instalar-se. No fundo, era esse o argumento do comunismo, o irmão gémeo, mas sem sotaina e cabeção, do salazarismo beirão; liberdade para quê, se havia pão na mesa?
Na semana passada, um dos meus irmãos comentou que teríamos agora um bilhete de identidade novo, onde se armazenaria toda a informação disponível sobre cada cidadão: os seus impostos e as suas doenças, as suas multas por excesso de velocidade e uma passagem pela prisão em 1975. Ele estava com dúvidas. Eu também: até agora, o meu médico das coronárias ignorava que de vez em quando a minha sobrinha me leva – nos arredores de São Miguel de Seide, onde vou em peregrinação anual celebrar Camilo e as suas penumbras – a almoçar rojões. Estão-me proibidos, mas a informação há-de entrar no “cartão único”. Estarei perdido.
in Revista Notícias Sábado – 30 Dezembro 2006
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