Lágrimas de outrora
Tenho, com o forte da Ínsua, um dos ex-líbris de Moledo, uma relação estranha. Acontece-me isso com vários pontos da paisagem do meu Minho e da Galiza (porque acrescento sempre, em dias de neblina, as pedras negras de Santa Tecla, em La Guardia): são lugares que provocam um sentimento que me não pertence mas a que dou bastante crédito. Sou pouco melancólico; a velhice, em vez de me reduzir à serenidade de um crédulo, concede-me a graça de me julgar um sátiro.
O velho Doutor Homem, meu pai, achava pouca graça à melancolia de meia-idade e atribuía-a ao medo e à preguiça. Uma coisa (a preguiça), aliás, conduzia à outra; por isso, raramente cedia à tentação de entristecer – o que viesse, chegaria. O seu carácter pouco literário, mas muito cheio de livros, encarregou-se de provar que só a morte, a maldade e a vulgaridade eram fatais como o destino. O resto eram contingências. Como poderia o leitor de Yeats e de Tennyson escapar às garras da melancolia? Da mesma forma que as neblinas da ínsua me não provocam tristeza, mas apenas o receio do reumático, que vejo como uma ameaça, rompendo os pinhais que sobem pela colina e aproximando-se de casa.
Às vezes penso que serei castigado pela minha leviandade, mas temo que o Juízo Final me acolha antes como personagem de comédia, em vez de avaliar os meus dotes poéticos. A minha sobrinha Maria Luísa não compreende como posso rir de coisas sérias – ela acha que um reaccionário, e ainda por cima minhoto, deve assemelhar-se a um fiscal dos impostos, vigiando a vida segundo a lógica do deve e do haver. Ela entende que as coisas sérias têm a ver com o sentido da vida ou com os gemidos diante da depravação. Ambas as coisas me enternecem, mas não cedo. Com esta idade descobri já, e abandonei, as ilusões acerca do destino: as coisas são como são. E a dissolução dos costumes, a discussão sobre como as pessoas são hoje mais ignorantes e inúteis, os grandes debates sobre a condição humana — lamento, mas escuto-os há uma eternidade. Durante essa eternidade acompanhei os relatos perdidos da Primeira Grande Guerra e a crueldade distante (para nós, família portuense) da segunda; vieram revoluções que triunfaram e estátuas firmes (como a do dr. Salazar) que foram derrubadas e aviltadas. A melancolia não me apanha.
Por isso, a minha sobrinha acha que eu deveria conservar algum tento na língua. Tento argumentar sem muita filosofia, lembrando que, se as pessoas fossem mais alegres, ligeiramente mais levianas, menos acometidas do desejo de salvar o mundo – viveríamos todos muito melhor. Ela crê, na sua generosidade, que o mundo devia ser salvo e que nos devíamos preocupar com a educação dos outros, com o seu bem-estar absoluto ou, pelo menos, com a sua vida. Essa é outra das coisas que se aprende com dificuldade: a generosidade não se organiza, não se abriga sob nenhum "método de viver". E, se os homens acreditassem mais na compaixão do que nas suas utopias acerca de um mundo sem erros, teríamos sido poupados a alguns incómodos brutais.
Se há uma coisa que não choro são as lágrimas de outrora. Dona Ester, minha mãe, protegeu-me dessa tentação ao ensinar-me que não se deve sofrer demasiado por amor. Eles vão e vêm. É uma palavra gasta. O velho Doutor Homem, por alturas do Natal, defendia que as famílias deviam poder administrar soporíferos moderadamente, para serem poupadas à histeria das Festas. Ele gostava do Natal. Herdei essa presunção, organizando os jantares e almoços da quadra, mandando vir de Vigo duas caixas de charutos, e presidindo ao ritual que consiste em verificar se a Companhia das índias da nossa Tia Benedita ainda está em condições. Cabem-me, alternadamente, nesta altura, os papéis de Matusalém e de 'pater famílias' que se tolera com a condescendência que o Natal exige. Depois, quando tudo passa e os meus irmãos e sobrinhos regressam a casa, o eremitério de Moledo readquire a sua solidão e alguma da sua frieza.
É a única melancolia da minha vida, no fundo. Este ano, para aliviá-la, decidiu-se que os charutos canarinos seriam substituídos por havanos legítimos, e que me caberia fazer um discurso. É por isso que desde há uma semana não leio senão Camilo, à procura de sarcasmos que me fiquem baratos. O riso é uma defesa muito séria contra a passagem dos anos. A minha sobrinha vai ficar surpreendida.
in Revista Notícias Sábado – 23 Dezembro 2006
O velho Doutor Homem, meu pai, achava pouca graça à melancolia de meia-idade e atribuía-a ao medo e à preguiça. Uma coisa (a preguiça), aliás, conduzia à outra; por isso, raramente cedia à tentação de entristecer – o que viesse, chegaria. O seu carácter pouco literário, mas muito cheio de livros, encarregou-se de provar que só a morte, a maldade e a vulgaridade eram fatais como o destino. O resto eram contingências. Como poderia o leitor de Yeats e de Tennyson escapar às garras da melancolia? Da mesma forma que as neblinas da ínsua me não provocam tristeza, mas apenas o receio do reumático, que vejo como uma ameaça, rompendo os pinhais que sobem pela colina e aproximando-se de casa.
Às vezes penso que serei castigado pela minha leviandade, mas temo que o Juízo Final me acolha antes como personagem de comédia, em vez de avaliar os meus dotes poéticos. A minha sobrinha Maria Luísa não compreende como posso rir de coisas sérias – ela acha que um reaccionário, e ainda por cima minhoto, deve assemelhar-se a um fiscal dos impostos, vigiando a vida segundo a lógica do deve e do haver. Ela entende que as coisas sérias têm a ver com o sentido da vida ou com os gemidos diante da depravação. Ambas as coisas me enternecem, mas não cedo. Com esta idade descobri já, e abandonei, as ilusões acerca do destino: as coisas são como são. E a dissolução dos costumes, a discussão sobre como as pessoas são hoje mais ignorantes e inúteis, os grandes debates sobre a condição humana — lamento, mas escuto-os há uma eternidade. Durante essa eternidade acompanhei os relatos perdidos da Primeira Grande Guerra e a crueldade distante (para nós, família portuense) da segunda; vieram revoluções que triunfaram e estátuas firmes (como a do dr. Salazar) que foram derrubadas e aviltadas. A melancolia não me apanha.
Por isso, a minha sobrinha acha que eu deveria conservar algum tento na língua. Tento argumentar sem muita filosofia, lembrando que, se as pessoas fossem mais alegres, ligeiramente mais levianas, menos acometidas do desejo de salvar o mundo – viveríamos todos muito melhor. Ela crê, na sua generosidade, que o mundo devia ser salvo e que nos devíamos preocupar com a educação dos outros, com o seu bem-estar absoluto ou, pelo menos, com a sua vida. Essa é outra das coisas que se aprende com dificuldade: a generosidade não se organiza, não se abriga sob nenhum "método de viver". E, se os homens acreditassem mais na compaixão do que nas suas utopias acerca de um mundo sem erros, teríamos sido poupados a alguns incómodos brutais.
Se há uma coisa que não choro são as lágrimas de outrora. Dona Ester, minha mãe, protegeu-me dessa tentação ao ensinar-me que não se deve sofrer demasiado por amor. Eles vão e vêm. É uma palavra gasta. O velho Doutor Homem, por alturas do Natal, defendia que as famílias deviam poder administrar soporíferos moderadamente, para serem poupadas à histeria das Festas. Ele gostava do Natal. Herdei essa presunção, organizando os jantares e almoços da quadra, mandando vir de Vigo duas caixas de charutos, e presidindo ao ritual que consiste em verificar se a Companhia das índias da nossa Tia Benedita ainda está em condições. Cabem-me, alternadamente, nesta altura, os papéis de Matusalém e de 'pater famílias' que se tolera com a condescendência que o Natal exige. Depois, quando tudo passa e os meus irmãos e sobrinhos regressam a casa, o eremitério de Moledo readquire a sua solidão e alguma da sua frieza.
É a única melancolia da minha vida, no fundo. Este ano, para aliviá-la, decidiu-se que os charutos canarinos seriam substituídos por havanos legítimos, e que me caberia fazer um discurso. É por isso que desde há uma semana não leio senão Camilo, à procura de sarcasmos que me fiquem baratos. O riso é uma defesa muito séria contra a passagem dos anos. A minha sobrinha vai ficar surpreendida.
in Revista Notícias Sábado – 23 Dezembro 2006
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