O prazer de escrever em Moledo
Eu tenho, descobri nos meus anos crepusculares, prazer em escrever. Escrevo à mão, caro leitor, É uma coisa de velho - hoje, só os velhos pensam que a caligrafia confere uma certa exclusividade ao que se escreve. No entanto, mais do que o efeito de escrever (ler as crónicas depois impressas), que já é vaidade bastante, agrada-me o acontecimento em si e o seu rasto de pequena glória familiar: as folhas de papel, a caneta Parker que herdei do velho doutor Homem (meu pai) e a letra desenhada. Estas coisas já não fazem parte do nosso tempo. A minha sobrinha insiste que eu devia registar o meu nome na brilhante geração das tecnologias, comprando um computador e aprendendo a lidar com os fabulosos segredos da informática, recebendo as suas cartas pela Internet. A sugestão é feita com a regularidade de um bom pêndulo e acontece de cada vez que uma das minhas crónicas é comentada - o que significa que a família "se ressentiu" ou, como ri um dos meus sobrinhos, "foi sacudida". Os meus irmãos não compreendem como puderam albergar, distraídos, tamanha vaidade entre paredes. Mas coisas destas vêm de onde menos se espera.
O prazer, de resto, é uma das ilusões que mais nos devia preocupar. Não por ser uma ilusão, coisa de que vivemos bastante, mas porque esgota tudo à sua volta, transformando em deserto árido uma existência que podia estar destinada a dar frutos. Não é, como já disse antes, o meu caso - um exemplo de egoísmo que encaixa relativamente bem no panorama de misantropia moderada dos Homem de hoje. As melhores coisas da nossa vida, os melhores exemplos do que pudemos fazer, não nascem do prazer mas da abnegação, do esforço e, em muitos casos, do sofrimento. Evidentemente que não há grande virtude no sofrimento; também ele é uma espécie de moeda de troca nesse grande sistema banca no, que é o da moral, em busca de recompensa ou de reparação pelos males passados. Acresce ainda que os juros do sofrimento não são satisfatórios nem felizes, antes resultam naquela espécie de ressentimento experimentado pelos que nunca viveram a plenitude da pequena alegria, a alegria da minúscula vitória sobre o destino.
O velho doutor Homem, meu pai, temia ser confidente de pessoas que tivessem sofrido para além de certo limite - com o argumento de que não era possível garantir que tamanha dose de sofrimento fosse verdadeira num mundo que tem gosto em maravilhar-se com o riso dos alarves. Penso, hoje, que ele teve sorte em não ver televisão. Ao contrário do que pensam certas pessoas bem-educadas, mas desajustadas em relação ao que se passa no mundo, a televisão não pode ser de outra maneira. O riso dos alarves conquistou o mundo, espalhou-se por todos os cantos como um gigantesco aparelho de televisão - e fala de prazer, como uma exigência que tem ares de figurar nas certidões de nascimento ou garantida como o direito de voto.
Lembro-me, por isso, da velha e manhosa sabedoria dos Homem, quando calha estarem entretidos em comentários sobre a vida alheia (uma distracção só permitida paredes dentro e no recato da sala de jantar ou na varanda do velho casarão de Ponte de Lima), e da severa advertência patriarcal diante de juízos sobre adultérios, infidelidades, questões amorosas e outras falhas da intimidade: "Disso não se fala, é com cada um." A ideia é generosa, mas também defensiva.
A família tem um registo satisfatório de irregularidades nesta matéria. Conta-se que um tio-avô dos Arcos de Valdevez raptou uma noiva à porta da igreja para depois se casar com ela em Espanha. Duas ou três presenças dos Homem em Coimbra, com a arredia finalidade de estudar leis, garantiram um registo de aventuras que, se não foram "interessantes", tiveram pelo menos o seu picante. Só a tia Benedita, que rezava todos os dias e temia o regresso do doutor Afonso Costa (para fechar as igrejas do Minho), escapa incólume a essa genealogia de pequenos incidentes. O melhor remédio para conter o riso alarve e os moralistas de ocasião é relembrar-lhes escândalos próprios. Essa pequena chantagem é de uma extraordinária eficácia. E é por isso que eu tenho prazer em escrever, descobri agora. Não há vaidade que não venha parar a Moledo.
in Revista Notícias Sábado - 29 Abril 2006
O prazer, de resto, é uma das ilusões que mais nos devia preocupar. Não por ser uma ilusão, coisa de que vivemos bastante, mas porque esgota tudo à sua volta, transformando em deserto árido uma existência que podia estar destinada a dar frutos. Não é, como já disse antes, o meu caso - um exemplo de egoísmo que encaixa relativamente bem no panorama de misantropia moderada dos Homem de hoje. As melhores coisas da nossa vida, os melhores exemplos do que pudemos fazer, não nascem do prazer mas da abnegação, do esforço e, em muitos casos, do sofrimento. Evidentemente que não há grande virtude no sofrimento; também ele é uma espécie de moeda de troca nesse grande sistema banca no, que é o da moral, em busca de recompensa ou de reparação pelos males passados. Acresce ainda que os juros do sofrimento não são satisfatórios nem felizes, antes resultam naquela espécie de ressentimento experimentado pelos que nunca viveram a plenitude da pequena alegria, a alegria da minúscula vitória sobre o destino.
O velho doutor Homem, meu pai, temia ser confidente de pessoas que tivessem sofrido para além de certo limite - com o argumento de que não era possível garantir que tamanha dose de sofrimento fosse verdadeira num mundo que tem gosto em maravilhar-se com o riso dos alarves. Penso, hoje, que ele teve sorte em não ver televisão. Ao contrário do que pensam certas pessoas bem-educadas, mas desajustadas em relação ao que se passa no mundo, a televisão não pode ser de outra maneira. O riso dos alarves conquistou o mundo, espalhou-se por todos os cantos como um gigantesco aparelho de televisão - e fala de prazer, como uma exigência que tem ares de figurar nas certidões de nascimento ou garantida como o direito de voto.
Lembro-me, por isso, da velha e manhosa sabedoria dos Homem, quando calha estarem entretidos em comentários sobre a vida alheia (uma distracção só permitida paredes dentro e no recato da sala de jantar ou na varanda do velho casarão de Ponte de Lima), e da severa advertência patriarcal diante de juízos sobre adultérios, infidelidades, questões amorosas e outras falhas da intimidade: "Disso não se fala, é com cada um." A ideia é generosa, mas também defensiva.
A família tem um registo satisfatório de irregularidades nesta matéria. Conta-se que um tio-avô dos Arcos de Valdevez raptou uma noiva à porta da igreja para depois se casar com ela em Espanha. Duas ou três presenças dos Homem em Coimbra, com a arredia finalidade de estudar leis, garantiram um registo de aventuras que, se não foram "interessantes", tiveram pelo menos o seu picante. Só a tia Benedita, que rezava todos os dias e temia o regresso do doutor Afonso Costa (para fechar as igrejas do Minho), escapa incólume a essa genealogia de pequenos incidentes. O melhor remédio para conter o riso alarve e os moralistas de ocasião é relembrar-lhes escândalos próprios. Essa pequena chantagem é de uma extraordinária eficácia. E é por isso que eu tenho prazer em escrever, descobri agora. Não há vaidade que não venha parar a Moledo.
in Revista Notícias Sábado - 29 Abril 2006
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