O que deve ser um homem
Não são os homens quem melhor pode definir o que deve e como deve ser um homem. Falar da ética do cavalheirismo é perigoso e inútil, simultaneamente - pode confundir-se com um catálogo de rituais sobre o comportamento em sociedade, o modo como se deve abrir uma porta, a hierarquia dos cumprimentos, a distribuição dos lugares a mesa, a lista de temas de conversa durante o almoço de Páscoa, a roupa que se deve levar a um funeral. Dona Elaine, que já faz parte da família desde que passou a administrar as minhas dietas, o horário dos meus medicamentos bem como a marcação de quartos para cada Verão de Moledo, entende desses assuntos e avisa-me: "O senhor doutor veja lá se desta vez não esquece o nome dos amigos do seu irmão. Eles vêm almoçar no domingo."
A destreza social diminui bastante com a idade e nunca se sabe o que se pode esperar de um velho, a quem se perdoam a falta de memória, os achaques de Primavera ou as idiossincrasias na política ou na literatura. Falo de literatura apenas por falar - na verdade, pouco se comenta de literatura à mesa hoje em dia. A mim, mencionam-me vagamente uns nomes de novos autores, mas o defeito da ignorância é um dos meus pecados. Arrependo-me com seriedade e escuto; desconheço as desventuras do romance contemporâneo, a minha preguiça vai sendo um Adamastor que engole todo e qualquer esforço. A minha sobrinha, que depenica nas minhas estantes à procura de literatura para as noites bracarenses, é exigente na matéria, o que me comove com alguma largueza. Dou-me a esse luxo com ela, embora dispense saber como se preenchem de livros as noites de Braga - o que me não contam, eu não sei; o que não sei, não me assusta; o que não me assusta, tem uma vaga existência para lá de Moledo e das suas tardes amenas de Abril.
Um cavalheiro devia, portanto, remeter-se aos seus assuntos. Não porque a curiosidade seja essencialmente uma prerrogativa feminina, mas porque os assuntos de cavalheiros andam ligeiramente descuidados. Escrevo-o com pena, naturalmente; mas o leitor sabe que o meu tempo é ainda o do naufrágio do Titanic. Quando minha sobrinha Maria Luísa se queixa, com aquele sarcasmo feito de melancolias disfarçadas, sobre "já não haver homens", eu remeto-me à memória, que é um refúgio para incapazes ou para convalescentes. Também já ouvi murmurar sobre "já não haver senhoras", mas é assunto que me não diz respeito. Antigamente, queixei-me varias vezes sobre essa decadência, mas o tempo foi passando. Na verdade, os anos correram, às minhas queixas sobre o funcionamento dos rins associaram-se outras sobre as coronárias e o reumatismo - e notei que as pessoas continuavam a chegar e a partir, visitavam Moledo, ficavam para a praia, reproduziam-se com mais ou menos alegria, mudavam as suas leituras, vestiam-se de forma mais ou menos arrebatada.
Mas é isso: os anos correram, o tempo foi passando. São coisas que não se alteram. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não piorámos substancialmente, mas ficámos com mais dúvidas.
Por isso, quando se murmura sobre o cavalheirismo, por exemplo, eu interrogo-me sobre se pode ser assim. Ou seja, sobre se pode haver cavalheirismo numa época em que um cavalheiro pode estar destinado a comportar-se como uma espécie de declamador do 'Ecclesiastes', lamentando a corrupção das coisas, ou como um lunático incompreendido. Esse era, aliás, o problema de Dom Quixote. Mas o tresloucado da Mancha fora um militar, habituado a códigos e a prerrogativas, aos sacrifícios corporais e à abnegação; nem morigerado pela presença de Sancho ele nos desiludiu diante das adversidades ou da ameaça da morte. Mas isso era literatura. Literatura apenas. Folhas que se soltam com o vento. Hoje, as únicas folhas a que presto atenção especial, leio-as à lupa, pois vêm no interior das caixas dos medicamentos. São elas que comandam o meu tempo. O resto, como pensaria qualquer razoável egoísta a prestar contas à eternidade, acaba por ser uma distracção.
in Revista Notícias Sábado - 15 Abril 2006
A destreza social diminui bastante com a idade e nunca se sabe o que se pode esperar de um velho, a quem se perdoam a falta de memória, os achaques de Primavera ou as idiossincrasias na política ou na literatura. Falo de literatura apenas por falar - na verdade, pouco se comenta de literatura à mesa hoje em dia. A mim, mencionam-me vagamente uns nomes de novos autores, mas o defeito da ignorância é um dos meus pecados. Arrependo-me com seriedade e escuto; desconheço as desventuras do romance contemporâneo, a minha preguiça vai sendo um Adamastor que engole todo e qualquer esforço. A minha sobrinha, que depenica nas minhas estantes à procura de literatura para as noites bracarenses, é exigente na matéria, o que me comove com alguma largueza. Dou-me a esse luxo com ela, embora dispense saber como se preenchem de livros as noites de Braga - o que me não contam, eu não sei; o que não sei, não me assusta; o que não me assusta, tem uma vaga existência para lá de Moledo e das suas tardes amenas de Abril.
Um cavalheiro devia, portanto, remeter-se aos seus assuntos. Não porque a curiosidade seja essencialmente uma prerrogativa feminina, mas porque os assuntos de cavalheiros andam ligeiramente descuidados. Escrevo-o com pena, naturalmente; mas o leitor sabe que o meu tempo é ainda o do naufrágio do Titanic. Quando minha sobrinha Maria Luísa se queixa, com aquele sarcasmo feito de melancolias disfarçadas, sobre "já não haver homens", eu remeto-me à memória, que é um refúgio para incapazes ou para convalescentes. Também já ouvi murmurar sobre "já não haver senhoras", mas é assunto que me não diz respeito. Antigamente, queixei-me varias vezes sobre essa decadência, mas o tempo foi passando. Na verdade, os anos correram, às minhas queixas sobre o funcionamento dos rins associaram-se outras sobre as coronárias e o reumatismo - e notei que as pessoas continuavam a chegar e a partir, visitavam Moledo, ficavam para a praia, reproduziam-se com mais ou menos alegria, mudavam as suas leituras, vestiam-se de forma mais ou menos arrebatada.
Mas é isso: os anos correram, o tempo foi passando. São coisas que não se alteram. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não piorámos substancialmente, mas ficámos com mais dúvidas.
Por isso, quando se murmura sobre o cavalheirismo, por exemplo, eu interrogo-me sobre se pode ser assim. Ou seja, sobre se pode haver cavalheirismo numa época em que um cavalheiro pode estar destinado a comportar-se como uma espécie de declamador do 'Ecclesiastes', lamentando a corrupção das coisas, ou como um lunático incompreendido. Esse era, aliás, o problema de Dom Quixote. Mas o tresloucado da Mancha fora um militar, habituado a códigos e a prerrogativas, aos sacrifícios corporais e à abnegação; nem morigerado pela presença de Sancho ele nos desiludiu diante das adversidades ou da ameaça da morte. Mas isso era literatura. Literatura apenas. Folhas que se soltam com o vento. Hoje, as únicas folhas a que presto atenção especial, leio-as à lupa, pois vêm no interior das caixas dos medicamentos. São elas que comandam o meu tempo. O resto, como pensaria qualquer razoável egoísta a prestar contas à eternidade, acaba por ser uma distracção.
in Revista Notícias Sábado - 15 Abril 2006
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