sábado, abril 08, 2006

Confissões escusadas

Foi a minha mãe que me impediu de cair nos abismos da infelicidade. A frase, vista assim, pode parecer arrancada a uma folha de Camilo, em ânsias de plágio. Mas não é: tratava-se mesmo de infelicidade. Dona Ester tratou os filhos com um zelo que, sendo minucioso e cheio de princípios, não a aproximava das velhas mães de família de cenho carregado e com a sensação de transportarem o peso de uma elevada missão - também ela sabia que a vida era como era. O velho doutor Homem (meu pai), sem nunca o mencionar, mostrou também que, num tempo em que as esposas eram preferencialmente mães e sentinelas da família, a sua mulher era, também, nossa mãe - e nunca o contrário; a ordem dos termos foi sempre essencial. Quanto ao estatuto de sentinela, estava-lhe naturalmente dificultado, uma vez que a vida dos outros raramente nos interessava. A famosa misantropia dos Homem nem com juízos se metia onde não era chamada - a nossa política era o abstencionismo em matéria moral.

Portanto, quando andávamos de carro, um velho Plymouth preto, sobretudo para ver a Apúlia ou para conferir que o mar da Granja era diferente do de Biarritz, os filhos iam atrás, relegados ao seu lugar natural, amontoados e massacrando a roupa. O velho doutor Homem (meu pai), que sobreviveu doze anos ao desaparecimento da minha mãe, nunca fez nada que pudesse alterar essa recordação; viveu a sua dor em silêncio. Se rara­mente refiro a minha mãe nestas crónicas, é por uma espécie de pudor que a protege do tempo e que me salva, a mim, da poeira que se acumula sobre a memória.

Seja como for, foi a minha mãe que me salvou dos abismos da infelicidade, na altura em que a quebra de um namoro impediu o meu casamento. Essas coisas eram sérias e deixavam marca. Mas Dona Ester sabia que a doença da paixão era uma forma baixa de orgulho e de prolongamento da adolescência; por isso, limitou-se a um trabalho em três etapas: primeiro, recomendando-me que esquecesse o assunto, porque um cavalheiro não se deixa arrastar em minudências; em segundo lugar, que já tinha idade suficiente para trabalhar longe de casa; finalmente, convenceu o velho doutor Homem, meu pai, a (uma vez que se aproximava o Verão) enviar-me para o Estoril durante um mês, ou dois, na presunção de que aos vinte e oito anos eu já poderia conhecer o lado mais mundano da família. Ela sabia que a frivolidade poderia ser o melhor lenitivo para um coração em destroços; nada que surpreendesse os Homem, famosos pela sua frieza e por um cepticismo que os poupava a comoções para lá do razoável. No meu tempo chorava-se bastante, muito mais do que agora - ou as lagrimas notavam-se mais, o que é um problema de perspectiva. Regressando ao tema: se o Tamariz (e a sua praia, e os seus estrangeiros, e os seus crepúsculos suaves sem as neblinas do Minho) me salvou da melancolia amorosa e portuense durante esses dois meses de estio, o trabalho do escritório completou a tarefa. Ao fim de uma temporada deu como concluída a minha aprendizagem definitiva nessa matéria — Dona Ester respirava de alívio por não me ter querido dentro de casa, penando de amor.

Hoje, recordando esse momento, sei que a infelicidade a que me refiro também poderia ter sido o começo de uma longa busca pelo casa­mento perfeito, que é outra ocupação destinada a quebrar o tédio ou a completar a condição do nosso destino, prolongando a família, o património e a história. Quis o meu destino, porém, que eu acabasse por me render ao vício do celibato, o que nunca me impediu de experimentar a luxúria ou a paixão; como qualquer ser humano, fui várias vezes agradavelmente vencido pelo instinto — mas uma resistência qualquer, além da minha leviandade, impediu-me de ser mais consequente. Minha sobrinha Maria Luísa tem suspeitas sobre o assunto. Ela pensa que estas confissões escusadas escondem alguma melancolia, cartas escondidas numa gaveta, fotografias gastas pela penumbra ou até um segredo de família. Quanto a melan­colia, não nego. Mas tudo o resto, se ainda existe, já perdeu a cor. Dona Ester acreditava que um cavalheiro não se perde em minudências.

in Revista Notícias Sábado - 8 Abril 2006