O sentido das coisas
A Páscoa é o apogeu da minha Primavera. Não o zénite, apenas o apogeu, que o substitui com vantagem. Com o tempo, a época associou-se a um rito pagão ligado ao clima, à meteorologia, às variações botânicas, ao ritmo das estacões. Pouco da Páscoa contemporânea recorda os hebreus atravessando o deserto depois dos padecimentos em terra estrangeira; e mesmo aquele Cristo, vagamente envolto no sangue da sua tragédia, não é ícone senão de si mesmo. E sendo isto absolutamente verdade, é também bom reconhecer que assinalamos o Natal independentemente do próprio Natal.
O velho doutor Homem (meu pai) gostava de relembrar, a propósito dos assuntos mais diversos, que nem tudo tem de ter sentido na nossa vida; esta afirmação causaria danos fatais nos espíritos modernos, habituados a terem explicações para quase tudo. Mas, felizmente, o velho advogado e bibliómano não chegou a ouvir os psicanalistas da nova geração nem assistiu a nenhuma arenga do dr. Loucã. A minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda, acha graça ao ar professoral do cavalheiro e garante que, se é para ser professor, então que seja um destes, convencido de que estudou a lição e de que não pode senão ministrá-la a um auditório de eleitores. Esta forma quase absurda de positivismo enternece-me. Lembro-me do optimismo de cavalheiros de outrora, do demagogo Afonso Costa à alegria suspeita de António Ferro, e reconheço que os sinais se mantêm - a certeza absoluta, um grau elevado de infalibidade, o riso sobre as opiniões que ou não entende ou não Ihe chegam à altitude do seu magnifico cérebro, conservado pelas leituras dos mestres e pela subserviência dos seguidores.
Adiante. Nessa matéria, os Homem, habituados as vicissitudes da história e aos obscuros túneis do conformismo, ao refúgio em Ponte de Lima ou a este eremitério de Moledo, recordarão para sempre as palavras de D. Pedro, triunfantes e cheias de esclarecimento: "Não me obrigueis a libertar-vos!" O meu irmão Raul, que tem acessos de boa disposição, chama-lhe "o outro", ao vencedor da guerra (ele não reconhece a existência de um lugar chamado Évora Monte), e continua a achar indigno que se mantenha o retrato do senhor Dom Miguel abandonado àquele rigor granítico do húmido casarão de Ponte de Lima - mas a família tem uma dívida de honra para com a memória da Tia Benedita (que apreciava bastante uma irresistível tanto quanta invisível beleza do príncipe) e não arreda pé. De resto, frequentemente assisto a discussões pacificas sobre o sentido que as coisas têm e, sobretudo, acerca da falta de sentido de outras, mais ou menos importantes.
Na Sexta-Feira de Páscoa, Dona Elaine providencia a continuação do hábito de não se comer carne cá em casa, e ela própria prepara o pão ázimo, que é uma tradição secular dos Homem durante o fim-de-semana pascal. Não sei se isso tem sentido e nunca tive disposição ou falta de lucidez suficiente para discutir. Limito-me a aceitar e a considerar que há uma razão para as coisas serem assim. No meu íntimo, quando, nesta idade, e neste mês, fumo um dos meus três meios charutos anuais (um no almoço de Páscoa, outro no meu aniversário e outro pelo Natal), também não entendo essa tradição. O velho doutor Homem, meu pai, foi um fumador aplicado e honestíssimo, fechando-se na biblioteca para aspirar melhor as nuvens de fumo das suas cigarrilhas de Espanha, que Ihe chegavam por gentileza do melhor contrabandista de "ultra-marinos" de La Coruña e iam bem com a organização meticulosa da sua biblioteca. O dr. Cunha Leal, quando ali esteve exilado, também as fumou por indicação do velho doutor Homem, meu pai, que não era um dos seus correligionários, mas que foi visitá-lo com o pretexto de passar em La Guardia para comer ostras, dado a Primavera ir avançada. Eu nunca fui um fumador, salvo esses três charutos anuais que nem me engrandeciam o paladar nem me elevavam a pequenez espiritual. Insisto que esses três charutos não tem sentido. A falar verdade, não os fumo. Eles constituem um humaníssimo hábito que me transporta ao tempo em que a vida tinha sentido. Ou não tinha - mas isso não era tão importante como hoje.
in Revista Notícias Sábado - 22 Abril 2006
O velho doutor Homem (meu pai) gostava de relembrar, a propósito dos assuntos mais diversos, que nem tudo tem de ter sentido na nossa vida; esta afirmação causaria danos fatais nos espíritos modernos, habituados a terem explicações para quase tudo. Mas, felizmente, o velho advogado e bibliómano não chegou a ouvir os psicanalistas da nova geração nem assistiu a nenhuma arenga do dr. Loucã. A minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda, acha graça ao ar professoral do cavalheiro e garante que, se é para ser professor, então que seja um destes, convencido de que estudou a lição e de que não pode senão ministrá-la a um auditório de eleitores. Esta forma quase absurda de positivismo enternece-me. Lembro-me do optimismo de cavalheiros de outrora, do demagogo Afonso Costa à alegria suspeita de António Ferro, e reconheço que os sinais se mantêm - a certeza absoluta, um grau elevado de infalibidade, o riso sobre as opiniões que ou não entende ou não Ihe chegam à altitude do seu magnifico cérebro, conservado pelas leituras dos mestres e pela subserviência dos seguidores.
Adiante. Nessa matéria, os Homem, habituados as vicissitudes da história e aos obscuros túneis do conformismo, ao refúgio em Ponte de Lima ou a este eremitério de Moledo, recordarão para sempre as palavras de D. Pedro, triunfantes e cheias de esclarecimento: "Não me obrigueis a libertar-vos!" O meu irmão Raul, que tem acessos de boa disposição, chama-lhe "o outro", ao vencedor da guerra (ele não reconhece a existência de um lugar chamado Évora Monte), e continua a achar indigno que se mantenha o retrato do senhor Dom Miguel abandonado àquele rigor granítico do húmido casarão de Ponte de Lima - mas a família tem uma dívida de honra para com a memória da Tia Benedita (que apreciava bastante uma irresistível tanto quanta invisível beleza do príncipe) e não arreda pé. De resto, frequentemente assisto a discussões pacificas sobre o sentido que as coisas têm e, sobretudo, acerca da falta de sentido de outras, mais ou menos importantes.
Na Sexta-Feira de Páscoa, Dona Elaine providencia a continuação do hábito de não se comer carne cá em casa, e ela própria prepara o pão ázimo, que é uma tradição secular dos Homem durante o fim-de-semana pascal. Não sei se isso tem sentido e nunca tive disposição ou falta de lucidez suficiente para discutir. Limito-me a aceitar e a considerar que há uma razão para as coisas serem assim. No meu íntimo, quando, nesta idade, e neste mês, fumo um dos meus três meios charutos anuais (um no almoço de Páscoa, outro no meu aniversário e outro pelo Natal), também não entendo essa tradição. O velho doutor Homem, meu pai, foi um fumador aplicado e honestíssimo, fechando-se na biblioteca para aspirar melhor as nuvens de fumo das suas cigarrilhas de Espanha, que Ihe chegavam por gentileza do melhor contrabandista de "ultra-marinos" de La Coruña e iam bem com a organização meticulosa da sua biblioteca. O dr. Cunha Leal, quando ali esteve exilado, também as fumou por indicação do velho doutor Homem, meu pai, que não era um dos seus correligionários, mas que foi visitá-lo com o pretexto de passar em La Guardia para comer ostras, dado a Primavera ir avançada. Eu nunca fui um fumador, salvo esses três charutos anuais que nem me engrandeciam o paladar nem me elevavam a pequenez espiritual. Insisto que esses três charutos não tem sentido. A falar verdade, não os fumo. Eles constituem um humaníssimo hábito que me transporta ao tempo em que a vida tinha sentido. Ou não tinha - mas isso não era tão importante como hoje.
in Revista Notícias Sábado - 22 Abril 2006
<< Home