Recomendações sobre o sentimento de culpa
A
minha sobrinha Maria Luísa queixa-se de que os adolescentes que tem a seu cargo
vivem no meio da indigência. Quer ela referir-se, vagamente, ao estado em que
os seus dois filhos se apresentam à mesa e ao seu desinteresse pela ordem e
pela sensatez, coisas fora de moda. Maria Luísa sente isto como o peso da sua
culpa.
Há,
aqui, uma novidade que atribuo à “idade sensata”: trata-se do “peso da sua
culpa”, uma espécie de tábua de salvação que protegeu as gerações anteriores da
catástrofe. Como se sabe, sem culpa não há civilização, coisa que surpreende
tanto a minha sobrinha como a moderna “sociologia”. Ambas, de braço dado,
defendem um mundo sem culpa onde sexo, virtude, maneiras à mesa e tabus
venerandos são descompostos para felicidade das gerações presentes e vindouras
para que todos sejam felizes e vivam em sinceridade plena e angustiante. O
assunto passou-me ao lado; presentemente não me afecta nem me desilude, pelo
simples facto de me restar um período de vida que pretendo dedicar a coisas
simples e tão banais como a jardinagem, a leitura de inutilidades e o controlo
das coronárias.
O
sentimento de culpa, no fundo, transportava consigo uma dose mortal de
fragilidade e humildade que nos poupava a atropelos e a desconsiderações. A
minha sobrinha chama a isto hipocrisia e eu concordo. Um pouco de hipocrisia,
na verdade, ajuda a manter o mundo em ordem, além de conferir um certo calor
aos nossos subtis pecados, tão mais saborosos quanto mais ignorados ou
praticados, com denodo ou desinteresse, em absoluto segredo.
As
coisas são como são. Os meus sobrinhos-netos apenas se limitam a cumprir um
programa que lhes estava destinado desde que a puericultura moderna descobriu
que não deviam ser reprimidos nem limitadas as suas liberdades; o mundo corre
de igual maneira e o rio Âncora não deixou de descer das montanhas entre
pinhais e arvoredos anónimos. Maria Luísa, a esquerdista da família, luta com
inimigos poderosos que se chamam ora “princípios ideológicos” ora
“inevitabilidades do tempo”: de um lado, aquilo e que acreditou até perfazer os
quarenta anos, a idade em que a razão procura alicerces para se instalar; do
outro, uma comodidade perdida por causa desses princípios. Nessa luta, estive
sempre em vantagem. Por ter nascido já no final da minha juventude, como dizem
as minhas irmãs, fui poupado a contrariedades; vivi intensamente, mas ninguém
sabe. Aprendi, com o velho Doutor Homem, meu pai, a refugiar-me nos bosques. Os
prazeres da hipocrisia são suaves, sim, mas duradouros.
in Domingo - Correio da Manhã - 27 Maio 2012