domingo, maio 06, 2012

Uma recompensa contra o tempo


O velho Doutor Homem, meu pai, sempre considerou que o seu papel de ‘pater familias’ não o transformava nem num patriarca a venerar nem num aposentado a cuidar. Creio, hoje, que suportou com abnegação esse papel e cumpriu as obrigações que figuravam numa espécie de código invisível herdado dos seus maiores – providenciar refeições, médico, “férias grandes” e, certamente, uma biblioteca aos descendentes; o resto não era assunto seu. Os seus cinco filhos sobreviveriam com saúde a este desinteresse geral e magnânimo, acrescentado ao rigor de Dona Ester, minha mãe: frequentaram a universidade, malbarataram talento e oportunidades, festejaram a passagem à idade adulta – enfim, cresceram. A partir daí, sentavam-se à mesa e discutiam assuntos correntes.

Ao aproximar-se o final dos anos cinquenta e verificada a relativa independência dos filhos, o velho Doutor Homem, meu pai, concluiu que o seu destino estava cumprido e que, finalmente, poderia dedicar-se com alguma largueza a satisfazer um ou outro desígnio da idade adulta. Tendo percorrido mais de metade da sua vida sem registar cataclismos ou grandes convulsões, é de supor que tivesse, como Samuel Johnson, realizado “a sua viagem às Hébridas” – mas solitária, sem confidentes (tirando talvez o seu irmão Alberto) nem conselheiros. Contabilizando danos e vantagens, concluiu que tinha alguns anos felizes à sua frente e que devia aproveitá-los.

Os caprichos do velho Doutor Homem, meu pai, incluíam a aquisição de um Triumph TR3, verde e, com toda a certeza, inadequado para a sua idade e para as estradas do Minho. Este projecto acompanhou-o durante muito tempo como uma espécie de vingança sem ressentimento contra os anos de contenção e de economias, ou como uma compensação por ter cumprido os deveres de um pai de família tranquilo e discreto. Tamanha sensatez merecia essa recompensa.
Dona Ester, minha mãe, ainda sugeriu que um automóvel daqueles, de dois lugares, não era, decerto, um emblema para uma família vasta e barulhenta. Em vão. A família podia desenvencilhar-se sem ele; um pouco de egoísmo e uma dose inesperada de loucura já tinham feito o seu trabalho e aberto as estradas imaginárias por onde o automóvel iria deslizar, rasando precipícios e flutuando em declives de arvoredos. Ao fim de um ano de espera, o velho Doutor Homem, meu pai, cumpriu finalmente um dos sonhos da sua vida. À porta do casarão de Ponte de Lima, a Tia Benedita, longe de achar a ideia estapafúrdia, lembrou que o senhor Dom Miguel, “ai dele”, também gostava de cavalos. 

in Domingo - Correio da Manhã - 6 de Maio 2012