Uma recompensa contra o tempo
O velho Doutor Homem, meu pai,
sempre considerou que o seu papel de ‘pater familias’ não o transformava nem
num patriarca a venerar nem num aposentado a cuidar. Creio, hoje, que suportou com
abnegação esse papel e cumpriu as obrigações que figuravam numa espécie de
código invisível herdado dos seus maiores – providenciar refeições, médico,
“férias grandes” e, certamente, uma biblioteca aos descendentes; o resto não
era assunto seu. Os seus cinco filhos sobreviveriam com saúde a este
desinteresse geral e magnânimo, acrescentado ao rigor de Dona Ester, minha mãe:
frequentaram a universidade, malbarataram talento e oportunidades, festejaram a
passagem à idade adulta – enfim, cresceram. A partir daí, sentavam-se à mesa e
discutiam assuntos correntes.
Ao aproximar-se o final dos anos
cinquenta e verificada a relativa independência dos filhos, o velho Doutor
Homem, meu pai, concluiu que o seu destino estava cumprido e que, finalmente,
poderia dedicar-se com alguma largueza a satisfazer um ou outro desígnio da
idade adulta. Tendo percorrido mais de metade da sua vida sem registar
cataclismos ou grandes convulsões, é de supor que tivesse, como Samuel Johnson,
realizado “a sua viagem às Hébridas” – mas solitária, sem confidentes (tirando
talvez o seu irmão Alberto) nem conselheiros. Contabilizando danos e vantagens,
concluiu que tinha alguns anos felizes à sua frente e que devia aproveitá-los.
Os caprichos do velho Doutor Homem,
meu pai, incluíam a aquisição de um Triumph TR3, verde e, com toda a certeza,
inadequado para a sua idade e para as estradas do Minho. Este projecto
acompanhou-o durante muito tempo como uma espécie de vingança sem ressentimento
contra os anos de contenção e de economias, ou como uma compensação por ter
cumprido os deveres de um pai de família tranquilo e discreto. Tamanha sensatez
merecia essa recompensa.
Dona Ester, minha mãe, ainda sugeriu
que um automóvel daqueles, de dois lugares, não era, decerto, um emblema para
uma família vasta e barulhenta. Em vão. A família podia desenvencilhar-se sem
ele; um pouco de egoísmo e uma dose inesperada de loucura já tinham feito o seu
trabalho e aberto as estradas imaginárias por onde o automóvel iria deslizar,
rasando precipícios e flutuando em declives de arvoredos. Ao fim de um ano de
espera, o velho Doutor Homem, meu pai, cumpriu finalmente um dos sonhos da sua
vida. À porta do casarão de Ponte de Lima, a Tia Benedita, longe de achar a
ideia estapafúrdia, lembrou que o senhor Dom Miguel, “ai dele”, também gostava
de cavalos.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 de Maio 2012
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