Sobre Samuel Johnson
Existem na biblioteca de Moledo duas edições de ‘The Life of Samuel Johnson’, de James Boswell. Uma foi trazida de Londres, antes da I Guerra, pelo velho Dr. Homem, meu pai – são quatro volumes encadernados que ainda resistem ao tempo, à poeira e à humidade do Minho, que acompanham duas outras edições históricas, da autoria do próprio Johnson, ‘A Journey to the Western Islands of Scotland’ e ‘The Vanity of Human Wishes’. Guardo-os entre os mais nobres livros destas estantes desarrumadas como um testemunho sobre a passagem dos anos e do chamado “gosto literário” que evoluiu alguma coisa desde o século XVIII, mas não o suficiente para diminuir a importância da obra. A outra edição veio num só volume, “de bolso”, e não posso lê-la hoje em dia: as suas mil páginas de letra miúda não foram feitas para as dioptrias de um contemporâneo do óleo de fígado de bacalhau e das canetas de aparo amovível. Contento-me em folhear este e aquele capítulo da grande biografia, seguindo a minha memória, que ainda resiste aos labirintos da preguiça. O prazer que retiro da sua leitura está, hoje, moldado pela recordação de um outro mais antigo, que é o de descobrir o génio de Johnson e a capacidade de Boswell para admirá-lo. Tirando o ‘Tristram Shandy’, de Lawrence Sterne, e o conjunto da obra de Camilo, não encontro livro que mais me tenha acompanhado. A excepção são os grande romances ingleses, como ‘Orgulho e Preconceito’ e ‘O Monte dos Vendavais’, ou russos, como ‘Anna Karenina’.
A minha sobrinha Maria Luísa (a única esquerdista da família) não leu nem Boswell nem Johnson; a sua sensibilidade e o seu gosto nunca o exigiram, mas a curiosidade traiu-a algumas vezes. No sábado passado, na réstia do crepúsculo – um raio de luz que comove os velhos como se fosse o último filtro de calor do Inverno –, Maria Luísa sentou-se na varanda que dá para os pinhais que escondem, ao fundo, as dunas da praia. “Talvez devêssemos ser mais espirituais”, comentou ela, com um cigarro aceso. Ela queria dizer que, para as “classes médias”, a vida está difícil e que há coisas mais importantes que o dinheiro ou o poder, bálsamos fáceis e ainda acessíveis apesar dos tempos actuais.
Samuel Johnson escreveu largamente sobre “a consolação diante da morte”. Os livros seriam uma salvação, tal como a contemplação ou a amizade. “Talvez devêssemos ser mais espirituais.” Ninguém sabe ao certo quais são esses caminhos, mas decerto eles existem. Alguns vêm dar a Moledo.
in Domingo - Correio da Manhã - 27 Março 2011
A minha sobrinha Maria Luísa (a única esquerdista da família) não leu nem Boswell nem Johnson; a sua sensibilidade e o seu gosto nunca o exigiram, mas a curiosidade traiu-a algumas vezes. No sábado passado, na réstia do crepúsculo – um raio de luz que comove os velhos como se fosse o último filtro de calor do Inverno –, Maria Luísa sentou-se na varanda que dá para os pinhais que escondem, ao fundo, as dunas da praia. “Talvez devêssemos ser mais espirituais”, comentou ela, com um cigarro aceso. Ela queria dizer que, para as “classes médias”, a vida está difícil e que há coisas mais importantes que o dinheiro ou o poder, bálsamos fáceis e ainda acessíveis apesar dos tempos actuais.
Samuel Johnson escreveu largamente sobre “a consolação diante da morte”. Os livros seriam uma salvação, tal como a contemplação ou a amizade. “Talvez devêssemos ser mais espirituais.” Ninguém sabe ao certo quais são esses caminhos, mas decerto eles existem. Alguns vêm dar a Moledo.
in Domingo - Correio da Manhã - 27 Março 2011
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