Um promontório em Moledo
Recordo agora as minhas primeiras crónicas, escritas com a timidez de um aventureiro que não sabe que o é. Primeiro, a substituição do lápis pela caneta Parker que pertenceu ao velho Doutor Homem, meu pai; depois, a substituição do correio normal pelo fax; depois, a intromissão da minha sobrinha Maria Luísa que, uma vez por outra, tenta explicar-me como funciona o email. É um esforço inútil: escrevo devagar, com a compenetração de um contabilista do século passado que utiliza canetas de três cores diferentes para desenhar os seus balancetes.
Foi um longo processo, de qualquer modo, que levou ao abandono das vetustíssimas folhas de papel almaço pautadas a trinta linhas – justificação foi a de que o aparelho de fax não reproduzia convenientemente nem a caligrafia nem os espaços em branco. As folhas brancas seguiam, então, para o correio, transportadas por Dona Elaine. Mais tarde, quando ao fim de uns meses a família se interessou ou tomou conhecimento da existência, no seu seio, de um cronista vaidoso e mais do que encanecido: veio então um aparelho de fax para casa, instalado na biblioteca onde está armazenada parte das leituras dos Homem. É, suponho, o mais moderno artefacto da casa de Moledo, juntamente com uma torradeira recente que veio substituir a velhíssima máquina que testemunhava a dieta da casa ao pequeno-almoço.
A minha sobrinha Maria Luísa foi, de qualquer modo, a responsável por essa quota de vaidade. Foi ela que organizou as crónicas que compõem o primeiro dos meus livros; demorei três semanas a compor um prefácio inútil e quase absurdo para um livro em que o melhor (e o mais popular, no fim de contas) acabou por ser o retrato do senhor Dom Miguel. O segundo livro resultou de uma insistência de vários amigos. O terceiro chegou-me às mãos como se fosse uma novidade, com a bela capa desenhada pela D. Vera (D. Celina, da Biblioteca de Caminha, providenciou – dos seus excelentes arquivos – uma fotografia de Moledo nos anos de ouro da minha memória). Dona Elaine não apreciou o título: ‘Um Promontório em Moledo’ parecia-lhe uma coisa incompreensível. “Com tantas coisas bonitas na terra, o senhor doutor foi logo escolher um nome que ninguém entende.” Não valia a pena explicar à governanta deste eremitério as variações que podiam fazer-se sobre essa expressão (uma das minhas irmãs ainda murmurou um “não dá com nada”). Acabou por ser Maria Luísa a lutar pelo título; ela acha que não se ganha nada em ser-se democrático. Concordei, fingindo-me resignado.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Março 2011
Foi um longo processo, de qualquer modo, que levou ao abandono das vetustíssimas folhas de papel almaço pautadas a trinta linhas – justificação foi a de que o aparelho de fax não reproduzia convenientemente nem a caligrafia nem os espaços em branco. As folhas brancas seguiam, então, para o correio, transportadas por Dona Elaine. Mais tarde, quando ao fim de uns meses a família se interessou ou tomou conhecimento da existência, no seu seio, de um cronista vaidoso e mais do que encanecido: veio então um aparelho de fax para casa, instalado na biblioteca onde está armazenada parte das leituras dos Homem. É, suponho, o mais moderno artefacto da casa de Moledo, juntamente com uma torradeira recente que veio substituir a velhíssima máquina que testemunhava a dieta da casa ao pequeno-almoço.
A minha sobrinha Maria Luísa foi, de qualquer modo, a responsável por essa quota de vaidade. Foi ela que organizou as crónicas que compõem o primeiro dos meus livros; demorei três semanas a compor um prefácio inútil e quase absurdo para um livro em que o melhor (e o mais popular, no fim de contas) acabou por ser o retrato do senhor Dom Miguel. O segundo livro resultou de uma insistência de vários amigos. O terceiro chegou-me às mãos como se fosse uma novidade, com a bela capa desenhada pela D. Vera (D. Celina, da Biblioteca de Caminha, providenciou – dos seus excelentes arquivos – uma fotografia de Moledo nos anos de ouro da minha memória). Dona Elaine não apreciou o título: ‘Um Promontório em Moledo’ parecia-lhe uma coisa incompreensível. “Com tantas coisas bonitas na terra, o senhor doutor foi logo escolher um nome que ninguém entende.” Não valia a pena explicar à governanta deste eremitério as variações que podiam fazer-se sobre essa expressão (uma das minhas irmãs ainda murmurou um “não dá com nada”). Acabou por ser Maria Luísa a lutar pelo título; ela acha que não se ganha nada em ser-se democrático. Concordei, fingindo-me resignado.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Março 2011
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