O fim do Inverno e a força dos elementos
A ‘Corografia Portugueza’ do Padre Carvalho da Costa ou o ‘Diccionario Chorographico’ de Américo Costa eram duas das presenças mais constantes das tardes de Verão em Ponte de Lima, onde a família se encontrava para fazer o que melhor apreciava: conversar e ver passar o tempo.
Tratava-se de uma academia de geógrafos a que se escapava com dificuldade; miudezas de paisagem, recordações de monumentos, aspectos de botânica geral, caminhos pelo meio da serra – de certa maneira era uma sabatina sobre coisas do Minho, um repositório de apontamentos retirados ao ‘Minho Pittoresco’, de José Augusto Vieira (de cujo primeiro tomo, de 1886, se conservavam duas cópias – uma em Ponte de Lima; outra, a que agora está em Moledo, nas estantes da velha casa portuense onde o velho Doutor Homem, meu pai, o mandara repousar convenientemente).
Agora, que o sol poisa como uma bênção sobre os pinhais de Caminha, Moledo e Vila Praia de Âncora, a recordação desses momentos é uma espécie de vida acrescentada. A Primavera espreita, como uma promessa de redenção. A crónica da província é feita de coisas insignificantes e de memórias das estações do ano, do ruído das motorizadas no final da tarde de domingo. Para entender esta desinteressante monotonia é preciso compreender como a província ficou abandonada. Reparo nisso quando regresso dos cumes de Santa Tecla, onde vamos uma vez por ano, depois de almoçar em Cerveira e de conferir que o rio segue o mesmo curso de sempre. Naquelas colinas que se afundam no mar do meu Minho vejo despontar a primeira luz verdadeira da temporada. Antigamente costumava vê-la nas mimosas que cresciam à beira da estrada de Viana ou nas ruínas de uma certa casa de Afife, onde se instalara um tio que emigrara e viera rico do Pernambuco.
Reparo, nestas recordações, que o Inverno se afasta lentamente. Para não contrariar os desígnios da natureza, contento-me em observar que o frio tem algumas vantagens para a saúde, para o restabelecimento das ervas do jardim e até para a vida familiar. O argumento convence-me, como é de esperar numa alma conservadora, mas os domingos de Março continuam a não mostrar nem uma parte da grandiosidade dos fins-de-semana estivais. Nas ruas de Moledo podaram e cortaram as ramagens das árvores. Uma poeira de frio ainda cobre os trilhos das dunas. Há uma nudez que comove os poetas e entristece os velhos, a quem o tempo não mostra piedade. Portanto, nada a fazer, por mais que me declare vencido pelos elementos, pelo clima e pela ordem das coisas.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Março 2011
Tratava-se de uma academia de geógrafos a que se escapava com dificuldade; miudezas de paisagem, recordações de monumentos, aspectos de botânica geral, caminhos pelo meio da serra – de certa maneira era uma sabatina sobre coisas do Minho, um repositório de apontamentos retirados ao ‘Minho Pittoresco’, de José Augusto Vieira (de cujo primeiro tomo, de 1886, se conservavam duas cópias – uma em Ponte de Lima; outra, a que agora está em Moledo, nas estantes da velha casa portuense onde o velho Doutor Homem, meu pai, o mandara repousar convenientemente).
Agora, que o sol poisa como uma bênção sobre os pinhais de Caminha, Moledo e Vila Praia de Âncora, a recordação desses momentos é uma espécie de vida acrescentada. A Primavera espreita, como uma promessa de redenção. A crónica da província é feita de coisas insignificantes e de memórias das estações do ano, do ruído das motorizadas no final da tarde de domingo. Para entender esta desinteressante monotonia é preciso compreender como a província ficou abandonada. Reparo nisso quando regresso dos cumes de Santa Tecla, onde vamos uma vez por ano, depois de almoçar em Cerveira e de conferir que o rio segue o mesmo curso de sempre. Naquelas colinas que se afundam no mar do meu Minho vejo despontar a primeira luz verdadeira da temporada. Antigamente costumava vê-la nas mimosas que cresciam à beira da estrada de Viana ou nas ruínas de uma certa casa de Afife, onde se instalara um tio que emigrara e viera rico do Pernambuco.
Reparo, nestas recordações, que o Inverno se afasta lentamente. Para não contrariar os desígnios da natureza, contento-me em observar que o frio tem algumas vantagens para a saúde, para o restabelecimento das ervas do jardim e até para a vida familiar. O argumento convence-me, como é de esperar numa alma conservadora, mas os domingos de Março continuam a não mostrar nem uma parte da grandiosidade dos fins-de-semana estivais. Nas ruas de Moledo podaram e cortaram as ramagens das árvores. Uma poeira de frio ainda cobre os trilhos das dunas. Há uma nudez que comove os poetas e entristece os velhos, a quem o tempo não mostra piedade. Portanto, nada a fazer, por mais que me declare vencido pelos elementos, pelo clima e pela ordem das coisas.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Março 2011
<< Home