Lembranças sobre a namorada russa
A distância faz grandes coisas. O facto de o meu tio Alberto ter mantido durante quase vinte anos uma “relação romântica” (a expressão era dele) com a sua “namorada russa” era justificado pela família com a distância que ia de Ponte de Lima até às margens do Cáspio. Chamar-lhe “a namorada russa” era um atrevimento maldoso; Alexandra era persa, realmente – mas a sua família abandonou a Rússia czarista depois do bolchevismo. Conheceram-se em Paris, onde no final dos anos quarenta se conhecia toda a gente, e, até ao final da vida de Alexandra – que está sepultada em Genebra –, creio que o Tio Alberto não passou um dia sem pensar no retrato que guardava no escritório desarrumado da sua casa de S. Pedro de Arcos: um rosto doce com olhos escuros iluminando a moldura de uns cabelos penteados como se usava na época em que se conheceram.
As viagens do Tio Alberto eram sempre misteriosas e, oficialmente, desconhecidas no casarão dos Homem. A Tia Benedita, matriarca da família, reprovava silenciosamente a natureza dessa “relação romântica”, termo que ela considerava absurdo e que caberia apenas na biografia de um autor de sonetos – um modelo literário que a Senhora atribuía à geração de vates do liberalismo, certamente por achar que catorze versos eram um excesso, tão palavroso e inútil como cheio de retórica lamechas. Evidentemente que havia outro motivo; a Tia Benedita considerava que uma mulher estrangeira sempre seria mais vulnerável ao bolchevismo, ao adultério, à incompetência em matéria doméstica e à indiferença em matéria religiosa.
Seja como for, está ainda por explicar o motivo que impediu o casamento do Tio Alberto com a sua namorada russa, que, afinal, era persa. A Tia Benedita achava que, para lá dos perigos normais, o Tio Alberto era um devasso e não passava, afinal, de um homem que queria comer ostras em Ribadeo, enxamear os Verões com viagens à Galiza e escusar-se aos deveres familiares. Sobre tudo isso, havia a distância. Por que não vinha “a russa” até aos vinhedos do Minho, onde ficava o melhor de Portugal?
O velho Doutor Homem, meu pai, pelo contrário, achava que a distância entre o S. Pedro de Arcos e o Cáspio era um bálsamo para a tentação libertina de um solteirão minhoto, a espécie mais perigosa dos predadores masculinos. E a vida seguiu o seu curso no meio desta disputa. Em Setembro, mal terminava a sua temporada de Ponte de Lima, o Tio Alberto tomava o comboio para Paris, onde chegava como um cavalheiro do Grande Mundo. Regressava para o fim do Natal, e trabalhava até à Páscoa. Não sei como comunicavam um com o outro. Mas comunicavam maravilhosamente.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Julho 2010
As viagens do Tio Alberto eram sempre misteriosas e, oficialmente, desconhecidas no casarão dos Homem. A Tia Benedita, matriarca da família, reprovava silenciosamente a natureza dessa “relação romântica”, termo que ela considerava absurdo e que caberia apenas na biografia de um autor de sonetos – um modelo literário que a Senhora atribuía à geração de vates do liberalismo, certamente por achar que catorze versos eram um excesso, tão palavroso e inútil como cheio de retórica lamechas. Evidentemente que havia outro motivo; a Tia Benedita considerava que uma mulher estrangeira sempre seria mais vulnerável ao bolchevismo, ao adultério, à incompetência em matéria doméstica e à indiferença em matéria religiosa.
Seja como for, está ainda por explicar o motivo que impediu o casamento do Tio Alberto com a sua namorada russa, que, afinal, era persa. A Tia Benedita achava que, para lá dos perigos normais, o Tio Alberto era um devasso e não passava, afinal, de um homem que queria comer ostras em Ribadeo, enxamear os Verões com viagens à Galiza e escusar-se aos deveres familiares. Sobre tudo isso, havia a distância. Por que não vinha “a russa” até aos vinhedos do Minho, onde ficava o melhor de Portugal?
O velho Doutor Homem, meu pai, pelo contrário, achava que a distância entre o S. Pedro de Arcos e o Cáspio era um bálsamo para a tentação libertina de um solteirão minhoto, a espécie mais perigosa dos predadores masculinos. E a vida seguiu o seu curso no meio desta disputa. Em Setembro, mal terminava a sua temporada de Ponte de Lima, o Tio Alberto tomava o comboio para Paris, onde chegava como um cavalheiro do Grande Mundo. Regressava para o fim do Natal, e trabalhava até à Páscoa. Não sei como comunicavam um com o outro. Mas comunicavam maravilhosamente.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Julho 2010
<< Home