Um promontório diante do mar
De tempos a tempos, Moledo parece o centro do mundo, o que a distrai da sua característica principal – que é ser um lugar afastado do mundo. Foi com esse argumento que, há cerca de vinte anos, escolhi viver entre pinhais e dunas. Mas uma interrupção vem sempre a calhar. Isso acontece semanalmente, aos almoços familiares de domingo, cada vez menos frequentados; ou quando “a pequena holandesa”, Isabelle, namorada do meu sobrinho Pedro, decide visitar as nossas províncias, abandonando temporariamente a Frísia; ou em pleno Verão, durante a “época balnear”, quando uns milhares (como sou avesso a estatísticas, situo o número em centenas) de banhistas concorrem para o areal branco tomando os benefícios do derradeiro e mais saudável iodo do nosso velho hemisfério.
Os almoços de domingo são serenos e servem para exercitar um dos dons mais apreciados da família, a má-língua – um eufemismo para designar a forma como, oficialmente, o mundo é observado deste promontório. As visitas de Isabelle são uma invasão de beleza que ilumina as sombras das árvores; ela arrasta consigo a ingenuidade dos civilizados que se admiram por haver pessoas que vivem na desordem e sem pensarem no castigo final depois de uma vida que incluiu duas refeições diárias de faca e garfo. Quanto à “época balnear”, ela consiste – no fundo – numa espécie de ritual que, ano após ano, prolonga a existência de Moledo como um território afastado do mundo. Explica-se isto pela temperatura das suas águas. As minhas irmãs (que frequentaram as Caraíbas quando as viagens eram caras, e que agora procuram o exotismo a preços moderados nos trópicos do Oriente), acreditam que em Moledo nasce uma corrente árctica que congela periodicamente o plâncton do fundo do mar. Mas não é verdade: a praia de Moledo apenas poderia ser frequentada com prescrição médica adequada.
De tempos a tempos recebo a visita de Dona Celina, que cuida admiravelmente das bibliotecas do concelho – e a quem mais recorro depois de o dr. Barreto Nunes se ter retirado da sua, em Braga. Como todas as pessoas cultas e românticas, a dra. Celina (que é minha fonte de informação regular sobre as novidades literárias das suas estantes) aprecia em Moledo a beleza que os escritores se têm esquecido de relembrar. No mês passado tentou convencer-me a escrever esse romance de Moledo. Respondi que não era nem podia ser romancista; falta-me a “habilidade” para contar uma história (não mencionei a idade). Ela sorriu. Também ela compreendeu que a preguiça joga a meu favor.
in Domingo - Correio da Manhã - 25 Julho 2010
Os almoços de domingo são serenos e servem para exercitar um dos dons mais apreciados da família, a má-língua – um eufemismo para designar a forma como, oficialmente, o mundo é observado deste promontório. As visitas de Isabelle são uma invasão de beleza que ilumina as sombras das árvores; ela arrasta consigo a ingenuidade dos civilizados que se admiram por haver pessoas que vivem na desordem e sem pensarem no castigo final depois de uma vida que incluiu duas refeições diárias de faca e garfo. Quanto à “época balnear”, ela consiste – no fundo – numa espécie de ritual que, ano após ano, prolonga a existência de Moledo como um território afastado do mundo. Explica-se isto pela temperatura das suas águas. As minhas irmãs (que frequentaram as Caraíbas quando as viagens eram caras, e que agora procuram o exotismo a preços moderados nos trópicos do Oriente), acreditam que em Moledo nasce uma corrente árctica que congela periodicamente o plâncton do fundo do mar. Mas não é verdade: a praia de Moledo apenas poderia ser frequentada com prescrição médica adequada.
De tempos a tempos recebo a visita de Dona Celina, que cuida admiravelmente das bibliotecas do concelho – e a quem mais recorro depois de o dr. Barreto Nunes se ter retirado da sua, em Braga. Como todas as pessoas cultas e românticas, a dra. Celina (que é minha fonte de informação regular sobre as novidades literárias das suas estantes) aprecia em Moledo a beleza que os escritores se têm esquecido de relembrar. No mês passado tentou convencer-me a escrever esse romance de Moledo. Respondi que não era nem podia ser romancista; falta-me a “habilidade” para contar uma história (não mencionei a idade). Ela sorriu. Também ela compreendeu que a preguiça joga a meu favor.
in Domingo - Correio da Manhã - 25 Julho 2010
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