Uma gargalhada de Julho e Agosto
Naquele Verão os meus irmãos convenceram-me a partilhar com eles o aluguer de um barco. Foi três anos a seguir ao fim da Guerra, era um Verão quente, agitado – e eu tinha 25 anos, aquilo que a Tia Benedita chamava “a flor da idade sem juízo”. Ela nunca perdoou as manobras dos três rapazes que atravessavam o rio Minho e se aproximavam das ilhas da Boega e dos Amores ora como sósias de Huckleberry Finn, ora como dândis que tentavam impressionar os povos ribeirinhos. Refiro-me aos povos ribeirinhos para não mencionar as jovens que habitualmente passavam férias em Vila Nova de Cerveira.
Nós éramos pouco dados a bucolismos. Atravessar o rio num barco de bandeira portuguesa era um atrevimento diplomático que punha em risco as sestas tardias da Guardia Civil da margem direita, em La Guardia, que podiam confundir-nos com um agrupamento de contrabandistas de Gondarém ou de Reboreda. E, estando fora de causa um desembarque nos areais de Camposancos para reivindicar a posse dos pinhais galegos e celtas de Santa Tecla, limitávamo-nos a subir e descer o rio como piratas locais, usando bonés de marinheiros comprados na feira de Leça.
Na semana passada, a minha sobrinha Maria Luísa levou-me, de carro, a passear pelos caminhos verdes que cruzam o Minho e a Galiza. Recordei-lhe esta história de desafio à modorra estival, e que terminou quando as primeiras névoas de Outono conseguiam ocultar a Ínsua e transformar o mar oceano num prolongamento das escarpas da Costa da Morte. O mundo do rio era estranho e profundo, um mapa limitado por margens que não nos pertenciam. Ao leme do pequeno barco – que nos custou as magras economias da época –, sentíamo-nos como actores italianos observados por damas dependuradas dos jardins. E tudo foi uma interrupção no envelhecimento a que estávamos condenados (eu mais do que os meus irmãos ou os amigos que ocasionalmente entravam no curto convés).
Ao contrário do que pensa Maria Luísa, sessenta anos depois não tenho nada para recordar. As coisas passaram-se desta ou daquela maneira. Conservo, passados estes anos, a recordação de uma gargalhada jovem e romântica – por quem me apaixonei, como devia, e por quem sofri bastante, mais tarde, como estava escrito. Havia uma sombra entre os choupos do rio. Havia um Verão, fatal como todos, perigoso como os restantes, luminoso como teria de ser um Verão passados todos estes anos, cheios de boa e de má literatura, de gripes e de almoços familiares. A minha sobrinha descobriu, com isso, que o mundo não começou agora e que há sessenta anos o rio Minho era um cenário para filmes de Felini ou, com menos interesse, de um Billy Wilder sem música. Se tivéssemos parado no tempo e aguardado alguns anos, todos nos julgaríamos sósias de Marcelo Mastroianni procurando – cada um de nós – a sua musa. Mas seria, afinal, a mesma recordação: tempo que passa, casas cheias de Verão, gargalhadas que só existem em Julho e Agosto, uma breve ideia de felicidade.
Nem na altura escrevi um verso ou uma palavra de amor. O que veio, chegou e passou. O barco ancorou em Caminha depois de uma última viagem, num primeiro domingo de Setembro nublado e tépido. Isabelle, a pequena holandesa, namorada do meu sobrinho Pedro, chegou ontem da sua Frísia natal, onde se ocupa de biologia e oceanografia. Dona Elaine, a governanta de Moledo, anotou que este ano temos menos um quarto ocupado porque um dos meus sobrinhos avisou que tem trabalho na Madeira. Maria Luísa vem mais cedo, com os filhos. Este ano não vai ao estrangeiro. Ela menciona “a crise”, mas suspeito que também ela se lembra de uma gargalhada de Julho e Agosto.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 Julho 2010
Nós éramos pouco dados a bucolismos. Atravessar o rio num barco de bandeira portuguesa era um atrevimento diplomático que punha em risco as sestas tardias da Guardia Civil da margem direita, em La Guardia, que podiam confundir-nos com um agrupamento de contrabandistas de Gondarém ou de Reboreda. E, estando fora de causa um desembarque nos areais de Camposancos para reivindicar a posse dos pinhais galegos e celtas de Santa Tecla, limitávamo-nos a subir e descer o rio como piratas locais, usando bonés de marinheiros comprados na feira de Leça.
Na semana passada, a minha sobrinha Maria Luísa levou-me, de carro, a passear pelos caminhos verdes que cruzam o Minho e a Galiza. Recordei-lhe esta história de desafio à modorra estival, e que terminou quando as primeiras névoas de Outono conseguiam ocultar a Ínsua e transformar o mar oceano num prolongamento das escarpas da Costa da Morte. O mundo do rio era estranho e profundo, um mapa limitado por margens que não nos pertenciam. Ao leme do pequeno barco – que nos custou as magras economias da época –, sentíamo-nos como actores italianos observados por damas dependuradas dos jardins. E tudo foi uma interrupção no envelhecimento a que estávamos condenados (eu mais do que os meus irmãos ou os amigos que ocasionalmente entravam no curto convés).
Ao contrário do que pensa Maria Luísa, sessenta anos depois não tenho nada para recordar. As coisas passaram-se desta ou daquela maneira. Conservo, passados estes anos, a recordação de uma gargalhada jovem e romântica – por quem me apaixonei, como devia, e por quem sofri bastante, mais tarde, como estava escrito. Havia uma sombra entre os choupos do rio. Havia um Verão, fatal como todos, perigoso como os restantes, luminoso como teria de ser um Verão passados todos estes anos, cheios de boa e de má literatura, de gripes e de almoços familiares. A minha sobrinha descobriu, com isso, que o mundo não começou agora e que há sessenta anos o rio Minho era um cenário para filmes de Felini ou, com menos interesse, de um Billy Wilder sem música. Se tivéssemos parado no tempo e aguardado alguns anos, todos nos julgaríamos sósias de Marcelo Mastroianni procurando – cada um de nós – a sua musa. Mas seria, afinal, a mesma recordação: tempo que passa, casas cheias de Verão, gargalhadas que só existem em Julho e Agosto, uma breve ideia de felicidade.
Nem na altura escrevi um verso ou uma palavra de amor. O que veio, chegou e passou. O barco ancorou em Caminha depois de uma última viagem, num primeiro domingo de Setembro nublado e tépido. Isabelle, a pequena holandesa, namorada do meu sobrinho Pedro, chegou ontem da sua Frísia natal, onde se ocupa de biologia e oceanografia. Dona Elaine, a governanta de Moledo, anotou que este ano temos menos um quarto ocupado porque um dos meus sobrinhos avisou que tem trabalho na Madeira. Maria Luísa vem mais cedo, com os filhos. Este ano não vai ao estrangeiro. Ela menciona “a crise”, mas suspeito que também ela se lembra de uma gargalhada de Julho e Agosto.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 Julho 2010
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