domingo, agosto 02, 2009

Como pecar sem se sentir pecador

A Tia Benedita não só acreditava na existência dos pecados mortais como, além disso, pensava que a sua lista devia ser periodicamente actualizada, bem como a dos castigos correspondentes. A sua teologia era profundamente positiva, ou seja, não perdia tempo com dúvidas nem variantes ao cânone, limitando-se a “fazer contas à vida espiritual”, tendo em conta que um lugar na eternidade não nos havia de ficar barato.

Nessa matéria, os Homem sempre conservaram – creio que foi isso que lhes permitiu terem sobrevivido às mudanças de clima, às alterações da espécie e à democracia – uma dualidade de critérios que os colocava no fio da navalha, e as suas ecolhas foram, frequentemente, mais tortuosas do que as velhas estradas dos Arcos de Valdevez.

Na verdade, as “pessoas normais” (eufemismo usado paredes dentro quando se fala de nós próprios) viveram sempre entre dois fascínios – pelo pudor e pela devassidão. Estas duas categorias morais aproximam-nos do Céu ou do Inferno consoante a circunstância. Na família há exemplos bastantes para ilustrar ambas, o que não significa nenhuma queda no “relativismo” mas, antes, a ideia de que a cada um cabe o seu destino. Há, portanto, pessoas que são levadas a uma vida virtuosa (entre elas cabe a Tia Benedita, com os seus terços, devoções e a conhecida embirração com a República) e pessoas que são arrastadas pela tentação (o caso de certas passagens da biografia do Tio Alberto, o bibliómano de S. Pedro dos Arcos) – mas ambas participam do conjunto de excentricidades de que uma família é capaz de exibir no julgamento final.

Afastados do palco, inibidos de mostrarem as suas credenciais políticas num mundo que punia as velharias e esquecia os derrotados, os Homem limitaram-se a viver a sua vida. O Minho é, apesar da Tia Benedita, um território de licenciosidade. Tudo contribui para a queda no pecado: a paisagem, que é luxuriante e desorganizada, tão cheia de clareiras como de esconderijos; a memória das suas guerras e paixões, que é aventurosa e lembra gestos corajosos; o clima, que é destemperado. Quanto ao género humano, ele é como é.

O velho Doutor Homem, meu pai, dizia que levar sobre os ombros a tarefa de transformar o mundo era uma catastrófica que, em geral, apenas atrai mais catástrofes. Portanto, devíamos, intimamente, aceitar que cada um escolhesse as suas tentações e os seus pudores. A minha sobrinha Maria Luísa não concorda; ela garante que “a civilização judaico-cristã” nos oprime com pudor a mais. Não acho. Na verdade, sempre se pecou com galhardia e não foi por isso que o mundo acabou. Só que há um grande picante em fazê-lo com pudor.

in Domingo - Correio da Manhã - 2 Agosto 2009