domingo, agosto 23, 2009

As duas repúblicas no meio do Verão

O Dr. Pulido Valente tocou no ponto: que não é possível comparar 'esta República' à República de Afonso Costa. A Tia Benedita, matriarca dos Homem, não privou com 'esta República' porque a de Afonso Costa a amedrontou o suficiente. Ela supunha que o demagogo ressuscitaria para assaltar as igrejas do Minho e comandar bandos de carbonários que andariam à solta pelas vilas. Durante anos, a senhora mal saía do casarão de Ponte de Lima, onde envelheceu, cheia de saúde. Mas tinha uma memória humilhante e humilhada da velha República, o único regime que conheceu verdadeiramente, se tivermos em conta que o ‘regime’ do dr. Salazar era o de um seminário de dominicanos da velha ordem, alimentado e vigilante, e que pouco respeito impunha a uma família que se habituara a sobreviver a tiranias e a paixões políticas.

Acontece que os festejos 'desta República' ameaçam transformar-se em festejos 'daqueles republicanos' (os da velha República), uma espécie de exéquias em honra dos 'heróis da Rotunda' e dos tiranetes que, pelas províncias fora, montaram o seu modo de vida. O que lá vai, lá vai. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que esta divisa era suficiente para afastar os fantasmas do passado e para, em pequenas doses, evitar o ressentimento. Tratava a Tia Benedita com as honras que se devem a uma relíquia, mas não lhe alimentava a velhice com recordações funestas.

A monarquia do Norte nunca comoveu os Homem, e os emissários de Paiva Couceiro saíram de Ponte de Lima com recomendações de que houvesse mais juízo e menos heroísmo empertigado. Isso não se devia ao republicanismo dos Homem mas à convicção de que a História escolhe os seus rumos segundo a bússola do acaso. A família tinha aprendido a lição de Évora Monte e evitava lembrar a procissão de condenados que tinha sido a derradeira viagem do Príncipe proscrito até ao porto de Sines, debaixo dos insultos da populaça e das ameaças dos verdugos. Depois da partida de D. Miguel para o exílio, os Homem acharam que a guerrilha do Remexido era uma prova de honradez mas condenada à tragédia (que acabou por acontecer da forma prevista, à traição). Setenta anos depois, a República não foi uma segunda Concessão de Évora Monte, mas o natural curso da História. O país amava os tiranos consoante o medo que eles provocavam. Como uma avalanche, a República ocuparia o país; quanto mais vítimas, mais apoio reunia. Era uma regra consagrada. O leitor pensa que isto não se devia dizer em pleno Verão, mas a pátria não tem descanso.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Agosto 2009