domingo, fevereiro 01, 2009

A pedra no rim

Temperamento seco, isso dizia da Tia Benedita o velho Doutor Homem, meu pai. A observação era injusta se tomada à letra – a Tia Benedita era um ser amável e turbulento em simultâneo. Se me perguntassem de quem gostaria de ter sido biógrafo eu teria escolhido (dado que o meu pai não tem biografia) dois personagens que marcaram a minha vida como cometas que arrastaram consigo uma poeira de génio e de talento, e ambos da minha família: o Tio Alberto, bibliófilo de S. Pedro dos Arcos, aventureiro, jurista e gastrónomo; e a Tia Benedita, que não deixou obra, não deixou seguidores, não deixou nada de seu senão a memória da uma existência limiana.

O Tio Alberto cozinhou e inventou receitas – guardadas, com a graça de uma arquivista ciumenta, pela minha sobrinha Maria Luísa –, viajou bastante, amou o suficiente, acumulou livros que fizeram da sua casa nas encostas do Minho uma estante sublime e cuidada. Os seus amores são famosos, a sua vida foi discreta; a sua cozinha era repentista, brutal, suculenta, masculina; as suas viagens ajudaram a estender o planisfério muito para lá do que lhe estava vedado – chegou ao Cáspio, enamorou-se das Américas, subiu às montanhas de África, atravessou dois desertos, e morreu quando os hibiscos e magnólias de São Pedro de Arcos retocavam com as suas cores a Primavera de 1968, num mês de Abril que recordava a imensa paleta do Criador.

A Tia Benedita, a derradeira matriarca dos Homem, limitou-se a cumprir um destino ingrato e uma tarefa dolorosa – a de prolongar o brio do ramo verdadeiramente ultramontano da família. Mantendo as excentricidades de há dois séculos, a Tia Benedita não foi apreciada como devia. Enviuvou cedo demais, envelheceu tarde. Conheceu apenas um amor, um país e uma família. A isto se juntou uma casa, o casarão de Ponte de Lima com as suas trepadeiras, canteiros de lírios e gladíolos, além do vasto jardim de camélias – e o retrato do Senhor Dom Miguel ao fundo do corredor, como um amuleto, uma recordação e um aviso: o de que os Homem tinham um sinal a marcá-los.

A popularização do seu "temperamento seco" não se deve à sua severidade ou ao seu miguelismo sem moderação. Foi o velho Doutor Homem, meu pai, que a apreciava acima de toda a suspeita, citando-lhe os anacronismos e as embirrações (a República, Afonso Costa, e o Brasil como fonte de imoralidade), criou a fama ao condoer-se com a sua pedra no rim. Atribuía a maleita à pouca água que a senhora bebia. Ficara seca.

in Domingo - Correio da Manhã - 1 de Fevereiro 2009