A maluquice (1)
A minha sobrinha acha que as mulheres – eu reproduzo a sua linguagem, com aquele pudor a que a idade e a saúde me obrigam – 'andam malucas'. Não sei como chegou Maria Luísa a essa conclusão, tão fora de época (a Tia Benedita protegia-se dos meses fatais em que a Primavera vinha tingir o Minho com as cores da devassidão), mas parece-me exagerada.
Na verdade, a condição de celibatário, longe de me afastar do convívio com as senhoras do meu tempo, aproximou-me delas como uma ligeira ameaça, quase inofensiva, passando do estatuto de observador ao de parte interessada. O 'meu tempo' é uma data distante, da qual guardo uma recordação vaga, desleal, ténue, melancólica e até desfocada, porque geralmente somos míopes para averbar as nossas memórias. Talvez por isso Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, não se canse de informar-me de que no mês próximo cumpro oitenta e nove anos preguiçosos.
O velho doutor Homem (meu pai), que era um português avisado, pediu-me algumas vezes para não discutir três coisas com o meu avô, administrador de quintas do Douro e historiador, por conta própria, dos caminhos--de-ferro portugueses: religião, a Convenção de Évora Monte e os atrasos no comboio rápido entre Campanhã e Barca d’Alva. Se bem que nem as quintas do Douro nem os caminhos-de-ferro fossem coisas suas, ele cuidava de ambas com profissionalismo e pundonor inexplicáveis para os dias de hoje. Claro que, quase mudo, discretamente, me pedia para não comentar em público 'a vida das senhoras'.
Um cavalheiro devia, portanto, remeter-se aos seus assuntos. Não porque a curiosidade seja essencialmente uma prerrogativa feminina, mas porque os assuntos de cavalheiros andam ligeiramente descuidados. Escrevo-o com pena, naturalmente; mas o leitor sabe que o meu tempo é ainda o do naufrágio do Titanic. Quando a minha sobrinha Maria Luísa se queixa, com aquele sarcasmo feito de melancolias disfarçadas, sobre 'já não haver homens', eu remeto-me à memória, que é um refúgio para incapazes ou para convalescentes. Também já ouvi murmurar sobre 'já não haver senhoras', mas é assunto que me não diz respeito. Antigamente, queixei--me várias vezes sobre essa decadência, mas o tempo foi passando. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Tudo isso para quê? Para que se chegasse à conclusão de que as senhoras 'andam malucas'.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Fevereiro 2009
Na verdade, a condição de celibatário, longe de me afastar do convívio com as senhoras do meu tempo, aproximou-me delas como uma ligeira ameaça, quase inofensiva, passando do estatuto de observador ao de parte interessada. O 'meu tempo' é uma data distante, da qual guardo uma recordação vaga, desleal, ténue, melancólica e até desfocada, porque geralmente somos míopes para averbar as nossas memórias. Talvez por isso Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, não se canse de informar-me de que no mês próximo cumpro oitenta e nove anos preguiçosos.
O velho doutor Homem (meu pai), que era um português avisado, pediu-me algumas vezes para não discutir três coisas com o meu avô, administrador de quintas do Douro e historiador, por conta própria, dos caminhos--de-ferro portugueses: religião, a Convenção de Évora Monte e os atrasos no comboio rápido entre Campanhã e Barca d’Alva. Se bem que nem as quintas do Douro nem os caminhos-de-ferro fossem coisas suas, ele cuidava de ambas com profissionalismo e pundonor inexplicáveis para os dias de hoje. Claro que, quase mudo, discretamente, me pedia para não comentar em público 'a vida das senhoras'.
Um cavalheiro devia, portanto, remeter-se aos seus assuntos. Não porque a curiosidade seja essencialmente uma prerrogativa feminina, mas porque os assuntos de cavalheiros andam ligeiramente descuidados. Escrevo-o com pena, naturalmente; mas o leitor sabe que o meu tempo é ainda o do naufrágio do Titanic. Quando a minha sobrinha Maria Luísa se queixa, com aquele sarcasmo feito de melancolias disfarçadas, sobre 'já não haver homens', eu remeto-me à memória, que é um refúgio para incapazes ou para convalescentes. Também já ouvi murmurar sobre 'já não haver senhoras', mas é assunto que me não diz respeito. Antigamente, queixei--me várias vezes sobre essa decadência, mas o tempo foi passando. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Tudo isso para quê? Para que se chegasse à conclusão de que as senhoras 'andam malucas'.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Fevereiro 2009
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