Santa Comba
O velho Doutor Homem, meu pai, coleccionou, ao longo da vida, uma série de historietas sobre o dr. Salazar. Ele justificava o dispêndio de tempo com a ideia, absurda, de um dia escrever um romance sobre o ditador. Na verdade, qualquer romance centrado na figura do seminarista beirão necessitaria de muita imaginação e de muito mais atrevimento; o problema é que o velho causídico, habituado a episódios escandalosos ou vibrantes dos tribunais do Porto ou dos velho bairros da Foz, passou a vida desiludido com a falta de substância por parte do presidente do Conselho.
O meu pai imaginava-o apenas. O consumo de metáforas excedia a sua paciência – snob e despropositado, ele via-o vestido na Saville Road de Santa Comba Dão, inspirado pela destino e pela missão que adoptara para a sua vida. O velho Doutor Homem, meu pai, criado com a falsa superficialidade de quem conhecia Londres mais do que Lisboa, leitor do 'Telegraph', dizia que o dr. Salazar tinha a profundidade de um personagem de má literatura. Era falso. Salazar não entrava na galeria dos personagens literários; limitava-se a reproduzir, à escala do país, a sua visão de um pequeno mundo sitiado por Casas do Povo, fachadas de Raul Lino e folhas pautadas par anotar despesas e receitas à boa maneira de uma dona de casa dos anos trinta. O retrato, visto desta maneira, é fascinante. Criado no seu cosmopolitismo londrino, o velho Doutor Homem, meu pai, queria um país que não era bem o seu; ele sonhava com lordes ocupando o seu lugar na discussão do destino do império, com clubes de cavalheiros que amavam a liberdade e com universidades onde se trabalharia com entusiasmo. Esse não era o seu país – era uma boa imagem, mas não era uma imagem real.
Pelo contrário, o dr. Salazar conhecia bem o país. Sabia que a pátria era astuta, manhosa, cheia de hortas e de canaviais, de exemplos morais em que a elegância fora substituída pela mediocridade da paz doméstica e das visitas pascais. Esse era – e é ainda – o verdadeiro país, a galáxia de vilas habitadas pelos personagens de Camilo e de Eça, pelos restos de glória deixados pelo passado. Se o velho Doutor Homem, meu pai, sonhava com um país, o dr. Salazar desenhava o seu rosto, cheio de rugas pálidas e austeras, economia doméstica e moral nos terraços das aldeias. O país não mudou. E o dr. Salazar, na verdade, não morreu. Reencarnou.
in Domingo - Correio da Manhã - 15 Fevereiro 2009
O meu pai imaginava-o apenas. O consumo de metáforas excedia a sua paciência – snob e despropositado, ele via-o vestido na Saville Road de Santa Comba Dão, inspirado pela destino e pela missão que adoptara para a sua vida. O velho Doutor Homem, meu pai, criado com a falsa superficialidade de quem conhecia Londres mais do que Lisboa, leitor do 'Telegraph', dizia que o dr. Salazar tinha a profundidade de um personagem de má literatura. Era falso. Salazar não entrava na galeria dos personagens literários; limitava-se a reproduzir, à escala do país, a sua visão de um pequeno mundo sitiado por Casas do Povo, fachadas de Raul Lino e folhas pautadas par anotar despesas e receitas à boa maneira de uma dona de casa dos anos trinta. O retrato, visto desta maneira, é fascinante. Criado no seu cosmopolitismo londrino, o velho Doutor Homem, meu pai, queria um país que não era bem o seu; ele sonhava com lordes ocupando o seu lugar na discussão do destino do império, com clubes de cavalheiros que amavam a liberdade e com universidades onde se trabalharia com entusiasmo. Esse não era o seu país – era uma boa imagem, mas não era uma imagem real.
Pelo contrário, o dr. Salazar conhecia bem o país. Sabia que a pátria era astuta, manhosa, cheia de hortas e de canaviais, de exemplos morais em que a elegância fora substituída pela mediocridade da paz doméstica e das visitas pascais. Esse era – e é ainda – o verdadeiro país, a galáxia de vilas habitadas pelos personagens de Camilo e de Eça, pelos restos de glória deixados pelo passado. Se o velho Doutor Homem, meu pai, sonhava com um país, o dr. Salazar desenhava o seu rosto, cheio de rugas pálidas e austeras, economia doméstica e moral nos terraços das aldeias. O país não mudou. E o dr. Salazar, na verdade, não morreu. Reencarnou.
in Domingo - Correio da Manhã - 15 Fevereiro 2009
<< Home