A vida dá voltas
Despeço-me com o ano; Janeiro é um mês tão cruel como qualquer outro para que as coisas se encerrem ou se renovem. A esta distância, em pleno Inverno, imagino o velho Doutor Homem, meu pai, sentado a esta mesma janela. É um sentimento vago e estranho. As coisas vão e vêm. Perdemos amigos e perdemos oportunidades, perdemos uma parte da família e perdemos um ano a seguir ao outro. Dona Ester, minha mãe, era contra o sentimentalismo e só por uma curiosa coincidência pôde encontrar a alma que lhe seria mais próxima durante toda a sua vida; teria sido num Verão de há muitos anos, quando o meu pai era ainda um “dandy” recém-chegado de Inglaterra, para onde o enviara a generosidade do meu avô – que achava, como Kingsley Amis, que havia de tudo em Londres. Celibatário, compreendo estes mistérios, que me comovem uma vez ou outra. Passei quase um século coleccionando histórias e coincidências, memórias que apenas voam como a poeira.
Janeiro é um mês tão bom como qualquer outro para despedidas e um cronista de província está sempre de férias, num lugar que parece fora do mundo, enevoado, onde as coisas têm uma importância relativa. Depois de dobrados os oitenta e cinco, não guardamos ressentimentos nem rejubilamos por qualquer motivo. Sabemos que a vida dá voltas e que no próximo ano haverá Janeiro, haverá frio, e que os Homem – um clã como qualquer outro – continuarão os seus almoços de domingo para se assegurarem de que eles próprios continuam.
Depois das férias de Inverno, a minha sobrinha Maria Luísa partiu com os filhos. Levou livros na bagagem; leva sempre. Na véspera de Ano Novo insistiu, diante de toda a família, em que eu devia escrever um romance – ela acredita que tenho coisas para dizer, o que é falso. Tenho apenas memória, tanto para as boas horas como para as coisas funestas. Um romance é sempre uma vingança, como explicou o autor do “Tristram Shandy”, e pouco mais. Nem assim desistiu e prometeu regressar ao tema.
As minhas irmãs consideraram que era necessário pensar numa viagem que as transporte para outro hemisfério, insistindo em que devo regressar a qualquer lado onde estive antes, talvez o Brasil, onde fui feliz há muitos anos, quando Copacabana ainda não era conhecida pela Tia Benedita. Ela não conheceu o samba, não ouviu as canções de Dick Farney, não viu o homem chegar à Lua – mas, na sua imaginação piedosa, protegeu a família da dissolução e dos tempos modernos.
É um mês de recordações, Janeiro. Ali está um retrato do Tio Alberto, o bibliógrafo de São Pedro de Arcos, o enamorado eterno, o venturoso botânico que morreu de amor. No extremo da sala, a fotografia da jovem Isabelle, “a pequena holandesa” que veio da Frísia para passar o Verão e o Outono com o meu sobrinho Pedro. A vida dá voltas.
Dona Elaine, a esta hora madrugadora, readquiriu a posse sobre o seu território – todo o eremitério de Moledo lhe pertence agora, sem visitas nem família ou adolescentes ruidosos. Sou um inquilino da minha casa, e um inquilino das minhas memórias, que me não pertencem nem me valem. “Um ano sobre o outro”, como repetia o velho Doutor Homem, meu pai, dobrando o “Telegraph” ou “O Primeiro de Janeiro” no primeiro dia do ano, considerando que não havia nada de novo sob os céus do Minho ou da sua cidade eterna, o Porto das neblinas, silencioso, literário, cheio de coisas antigas. Com este cenário, Moledo volta a ser o centro do mundo. Perto, em Ponte de Lima, o casarão onde os meus antepassados viveram, recebe a humidade das geadas e o seu longo corredor frio deixa vislumbrar o retrato do senhor Dom Miguel, uma dessas recordações de família que daqui a vinte anos ninguém saberá explicar.
A vaidade das pequenas coisas. A memória dos gestos que perduraram. Numa praia do Minho, minha mãe estende a mão para um grupo de adolescentes bronzeados e sorridentes – arrastados pelo areal como a derradeira brisa do mundo. Num passeio da Foz, pedalo numa bicicleta azul e páro diante do mar. Há muitos anos, o velho doutor Homem, meu pai, veste o sobretudo e inicia o seu caminho discreto e solitário para o escritório onde se dedicou a sustentar a família. É Janeiro. São retratos que passaram de repente sobre anos e anos de uma vida com sujeito, predicado e complemento directo. Não guardo lágrimas para este momento.
in Revista Notícias Sábado – 5 Janeiro 2008
Janeiro é um mês tão bom como qualquer outro para despedidas e um cronista de província está sempre de férias, num lugar que parece fora do mundo, enevoado, onde as coisas têm uma importância relativa. Depois de dobrados os oitenta e cinco, não guardamos ressentimentos nem rejubilamos por qualquer motivo. Sabemos que a vida dá voltas e que no próximo ano haverá Janeiro, haverá frio, e que os Homem – um clã como qualquer outro – continuarão os seus almoços de domingo para se assegurarem de que eles próprios continuam.
Depois das férias de Inverno, a minha sobrinha Maria Luísa partiu com os filhos. Levou livros na bagagem; leva sempre. Na véspera de Ano Novo insistiu, diante de toda a família, em que eu devia escrever um romance – ela acredita que tenho coisas para dizer, o que é falso. Tenho apenas memória, tanto para as boas horas como para as coisas funestas. Um romance é sempre uma vingança, como explicou o autor do “Tristram Shandy”, e pouco mais. Nem assim desistiu e prometeu regressar ao tema.
As minhas irmãs consideraram que era necessário pensar numa viagem que as transporte para outro hemisfério, insistindo em que devo regressar a qualquer lado onde estive antes, talvez o Brasil, onde fui feliz há muitos anos, quando Copacabana ainda não era conhecida pela Tia Benedita. Ela não conheceu o samba, não ouviu as canções de Dick Farney, não viu o homem chegar à Lua – mas, na sua imaginação piedosa, protegeu a família da dissolução e dos tempos modernos.
É um mês de recordações, Janeiro. Ali está um retrato do Tio Alberto, o bibliógrafo de São Pedro de Arcos, o enamorado eterno, o venturoso botânico que morreu de amor. No extremo da sala, a fotografia da jovem Isabelle, “a pequena holandesa” que veio da Frísia para passar o Verão e o Outono com o meu sobrinho Pedro. A vida dá voltas.
Dona Elaine, a esta hora madrugadora, readquiriu a posse sobre o seu território – todo o eremitério de Moledo lhe pertence agora, sem visitas nem família ou adolescentes ruidosos. Sou um inquilino da minha casa, e um inquilino das minhas memórias, que me não pertencem nem me valem. “Um ano sobre o outro”, como repetia o velho Doutor Homem, meu pai, dobrando o “Telegraph” ou “O Primeiro de Janeiro” no primeiro dia do ano, considerando que não havia nada de novo sob os céus do Minho ou da sua cidade eterna, o Porto das neblinas, silencioso, literário, cheio de coisas antigas. Com este cenário, Moledo volta a ser o centro do mundo. Perto, em Ponte de Lima, o casarão onde os meus antepassados viveram, recebe a humidade das geadas e o seu longo corredor frio deixa vislumbrar o retrato do senhor Dom Miguel, uma dessas recordações de família que daqui a vinte anos ninguém saberá explicar.
A vaidade das pequenas coisas. A memória dos gestos que perduraram. Numa praia do Minho, minha mãe estende a mão para um grupo de adolescentes bronzeados e sorridentes – arrastados pelo areal como a derradeira brisa do mundo. Num passeio da Foz, pedalo numa bicicleta azul e páro diante do mar. Há muitos anos, o velho doutor Homem, meu pai, veste o sobretudo e inicia o seu caminho discreto e solitário para o escritório onde se dedicou a sustentar a família. É Janeiro. São retratos que passaram de repente sobre anos e anos de uma vida com sujeito, predicado e complemento directo. Não guardo lágrimas para este momento.
in Revista Notícias Sábado – 5 Janeiro 2008
<< Home