Educação sentimental
O velho Doutor Homem, meu pai, sobreviveu à revolução de 1974 e continuou, como portuense antigo, a ler ‘O Primeiro de Janeiro’ e o ‘Telegraph’, que já não vinha do clube inglês da Rua das Virtudes – mas pelo correio, com quatro dias de atraso. Esta indiferença pelas agonias da Pátria e pelas paixões da democracia intrigava as visitas de casa, que se lamentavam bastante e recorriam à medicina da indignação para esconder o despeito. Mas a família, que era conservadora antes do Constitucionalismo e do ódio a Fontes Pereira de Melo, não se comovia com o anúncio do fim do mundo, que viria com o socialismo.
Nisso, o papel de D. Ester, minha mãe, foi decisivo. Ela não via virtudes no sentimentalismo nem nos poetas românticos, preferindo o bronzeado das praias do Minho e uma educação ligeiramente frívola em matéria literária mas boa em tabuada. Isso conservou-nos (somos três irmãos e duas irmãs, eu o mais velho com larga distância) com saúde, guarda-roupa razoável e uma levíssima misantropia, condições mínimas para sobreviver nos novos tempos democráticos. As minhas irmãs lamentam bastante, porque acham que foi graças a isso que cheguei solteiro à velhice, indiferente aos benefícios do matrimónio e à história de Romeu e Julieta.
A minha sobrinha Maria Luísa, educada com muita literatura (boa parte, da minha biblioteca), vai no segundo divórcio mas, felizmente, não chegou ao terceiro casamento. Tenho uma secreta admiração pela sua biografia amorosa. Os Homem, apesar de tudo, deixaram um rasto de amoralidade nos arquivos: um tio dos Arcos raptou uma noiva à porta da igreja para casar com ela em Espanha; o Tio Alberto, que foi o maior bibliófilo do Minho e que cozinhou para Camilo José Cela, enamorou-se por uma princesa do Cáspio; o velho Doutor Homem, meu pai, com o pretexto de visitar o dr. Cunha Leal, exilado na Corunha no tempo de Salazar, ia comer ostras a Ribadeo e visitar os botequins de Vigo; e o Tio Alfredo Augusto, que regressou do Pernambuco no final dos anos sessenta, suspirava com saudades das plantações de açúcar.
Ao ler estas crónicas, a família suspeita de que alberga um sátiro sem vergonha. Só a minha sobrinha Maria Luísa, que vota à esquerda, acha graça às aventuras de um bando de desmiolados que venerou o senhor Dom Miguel.
in Domingo – Revista Correio da Manhã – 27 Janeiro 2008
Nisso, o papel de D. Ester, minha mãe, foi decisivo. Ela não via virtudes no sentimentalismo nem nos poetas românticos, preferindo o bronzeado das praias do Minho e uma educação ligeiramente frívola em matéria literária mas boa em tabuada. Isso conservou-nos (somos três irmãos e duas irmãs, eu o mais velho com larga distância) com saúde, guarda-roupa razoável e uma levíssima misantropia, condições mínimas para sobreviver nos novos tempos democráticos. As minhas irmãs lamentam bastante, porque acham que foi graças a isso que cheguei solteiro à velhice, indiferente aos benefícios do matrimónio e à história de Romeu e Julieta.
A minha sobrinha Maria Luísa, educada com muita literatura (boa parte, da minha biblioteca), vai no segundo divórcio mas, felizmente, não chegou ao terceiro casamento. Tenho uma secreta admiração pela sua biografia amorosa. Os Homem, apesar de tudo, deixaram um rasto de amoralidade nos arquivos: um tio dos Arcos raptou uma noiva à porta da igreja para casar com ela em Espanha; o Tio Alberto, que foi o maior bibliófilo do Minho e que cozinhou para Camilo José Cela, enamorou-se por uma princesa do Cáspio; o velho Doutor Homem, meu pai, com o pretexto de visitar o dr. Cunha Leal, exilado na Corunha no tempo de Salazar, ia comer ostras a Ribadeo e visitar os botequins de Vigo; e o Tio Alfredo Augusto, que regressou do Pernambuco no final dos anos sessenta, suspirava com saudades das plantações de açúcar.
Ao ler estas crónicas, a família suspeita de que alberga um sátiro sem vergonha. Só a minha sobrinha Maria Luísa, que vota à esquerda, acha graça às aventuras de um bando de desmiolados que venerou o senhor Dom Miguel.
in Domingo – Revista Correio da Manhã – 27 Janeiro 2008
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