O segredo da longevidade
Antes de começar a escrever neste jornal, o dr. Octávio Ribeiro quis levar-me a um restaurante onde já não entrava desde os meus tempos de juventude – há muito tempo, depois da Guerra; estávamos em 1948. Eu envelheci; o restaurante renovou-se. Mas em ambos permanece aquela espécie de melancolia que prescreve como as velharias. Ele conserva a sua dignidade e a indiferença diante das grandes mudanças do mundo; eu sobrevivo com dieta. Ambos continuamos conservadores, como seria de esperar.
Aos oitenta e tantos anos não é de esperar que diga outra coisa. Vivo no Minho, e a única coisa que não tem segredos para mim é o mar de Moledo, onde me instalei há mais de vinte anos para usufruir de uma reforma que agravaria a minha preguiça e me obrigaria a ordenar a biblioteca.
Os Homem são uma família peculiar: mantêm – no casarão de Ponte de Lima, velha glória dos antigos granitos – restaurado e limpo, o retrato do senhor Dom Miguel; continuam a almoçar aos domingos para conservar uma das grandes tradições de família, a má-língua; em tudo o resto, tornaram-se “filósofos”, designação que Eusébio Macário, o personagem de Camilo, adoptou para aderir aos novos tempos que lhe concederam o título de barão. Essa é a diferença. Educados pelas derrotas na política, primeiro com a derrota de Évora Monte, depois com o advento da República, finalmente pela desilusão democrática do velho Doutor Homem, meu pai, na família não houve barões nem se aceitaram títulos públicos. Os Homem vivem em retiro, se assim se pode dizer, e não aceitam – dentro de portas – que a história se reescreva com a paixão dos vencedores, que são sempre vaidosos.
O meu médico de Viana (a quem recorro nas aflições, e que vigia o temperamento das coronárias e do fluxo renal) não o diz, mas sei que a longevidade dos Homem o aflige como um milagre da província. O segredo é só este: espremer a pasta de dentes pelo fundo, não ler demasiados romances, manter os retratos dos antepassados, levantar cedo e evitar ceder à indignação. Depois de fazer oitenta e cinco anos, a família trata-me como uma página do álbum de glórias, anterior ao Titanic, mas destinado ao naufrágio ou ao museu. Faço o que posso, só para não os desiludir.
in Domingo - Revista Correio da Manhã – 20 Janeiro 2008
Aos oitenta e tantos anos não é de esperar que diga outra coisa. Vivo no Minho, e a única coisa que não tem segredos para mim é o mar de Moledo, onde me instalei há mais de vinte anos para usufruir de uma reforma que agravaria a minha preguiça e me obrigaria a ordenar a biblioteca.
Os Homem são uma família peculiar: mantêm – no casarão de Ponte de Lima, velha glória dos antigos granitos – restaurado e limpo, o retrato do senhor Dom Miguel; continuam a almoçar aos domingos para conservar uma das grandes tradições de família, a má-língua; em tudo o resto, tornaram-se “filósofos”, designação que Eusébio Macário, o personagem de Camilo, adoptou para aderir aos novos tempos que lhe concederam o título de barão. Essa é a diferença. Educados pelas derrotas na política, primeiro com a derrota de Évora Monte, depois com o advento da República, finalmente pela desilusão democrática do velho Doutor Homem, meu pai, na família não houve barões nem se aceitaram títulos públicos. Os Homem vivem em retiro, se assim se pode dizer, e não aceitam – dentro de portas – que a história se reescreva com a paixão dos vencedores, que são sempre vaidosos.
O meu médico de Viana (a quem recorro nas aflições, e que vigia o temperamento das coronárias e do fluxo renal) não o diz, mas sei que a longevidade dos Homem o aflige como um milagre da província. O segredo é só este: espremer a pasta de dentes pelo fundo, não ler demasiados romances, manter os retratos dos antepassados, levantar cedo e evitar ceder à indignação. Depois de fazer oitenta e cinco anos, a família trata-me como uma página do álbum de glórias, anterior ao Titanic, mas destinado ao naufrágio ou ao museu. Faço o que posso, só para não os desiludir.
in Domingo - Revista Correio da Manhã – 20 Janeiro 2008
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