domingo, novembro 20, 2011

Álbuns de retratos, o paraíso de um conservador

A minha sobrinha Maria Luísa surpreende-se frequentemente com os álbuns de família, uma velharia que só visito por dedicação ou como um guia de museu. Desta vez, comentou a roupa da família, a compostura das poses com que os grupos se deixavam fotografar, os retratos formais, certa rigidez com que a posteridade os fixou. Os retratos da Tia Benedita foram sempre requisitados para falar da família; havia no olhar da matriarca dos Homem uma bravura indefinida, qualquer coisa que confundiu sempre os que a recordam como a “ultramontana de Ponte de Lima” e que lhe exigiam uma dureza que nunca exibiu. A bravura do olhar não escondia uma certa docilidade, e a docilidade nunca escondeu a determinação da indiferença com que acolhia as novidades do mundo, uma coisa que dispensava e a arreliava.

A idade é um assunto banal. A partir de determinada altura deixamos de compreender o mundo e o facto devia tranquilizar-nos. Compreendemo-lo até certa altura; depois, ou nos comove ou nos deixa zangados; passa a ser indiferente mais tarde, quando o corpo exige mais cuidados e se compreende que as coisas do mundo decorrem perfeitamente sem a nossa intervenção ou sem o nosso horror. O velho Doutor Homem, meu pai, pedia que deixassem a Tia Benedita em paz; o seu mundo terminara há muito, os seus receios eram infundados, a sua vida não incomodava o curso das coisas nem a forma como “as novas gerações” escolhiam a maneira de vestir, de escolher uma profissão ou de destruir um amor.

Não sinto nenhuma amargura ao ver como o tempo passou sobre esses álbuns de família. Comovem-me os anos que passaram em vão, quase tanto como os momentos de felicidade vividos há quarenta, cinquenta, sessenta anos, e que são apenas uma ténue corrente de ar que percorre a casa e a deixa – também ela – indiferente. Essas fotografias deixam-me reconfortado. Numa delas, Dona Ester, minha mãe, está sentada sobre um muro diante de uma praia (os meus pais conheceram-se em Biarritz) – a mesma onde, nos anos vinte, o velho Doutor Homem, meu pai, a pediu em casamento. Penso que nessa época a vida era mais fácil. Mais medíocre, sim; mas mais fácil. O tempo da penicilina ainda não chegara e o ‘glamour’ do mundo tinha perecido com o Titanic, com a guerra e com o ódio que atravessara a I República.

Explico a Maria Luísa que se é conservador por motivos banais. Às vezes, apenas por sermos delicados e respeitosos para com a passagem do tempo. Por sentirmos uma grande nostalgia das ruínas perfeitas, dos bosques de outrora e de uma ordem que já não vive entre nós.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Novembro 2011