domingo, novembro 06, 2011

A revisão da história e um pouco de misantropia

O mundo não está mais estranho do que há oitenta anos, quando eu aprendia a declinar, de acordo com os livros a época, os momentos essenciais da História Pátria. Os vencedores da História eram, com poucas excepções, os mesmos de hoje. Uma parte da família sentia-se indignada com o deslize de considerar a convenção de Évora Monte o momento essencial do século XIX, a par da inauguração dos caminhos de ferro – mas a maior parte seguia em frente e não se dava ao trabalho de tentar fazer o que, para o Tio Henrique, seria “repor alguma verdade” sobre os factos, embora a generalidade dos Homem insista em designar por Concessão de Évora Monte aquilo que passou à posteridade como Convenção.

Acontece que o Tio Henrique, além de herói militar praticamente desconhecido de algumas campanhas de África – onde se notabilizou na arma de engenharia –, era sobretudo o autor de todos os ditirambos conhecidos na minha infância e adolescência. Falava por advérbios e adjectivos a propósito das coisas mais simples e a sua retórica aproximava-se bastante da dos vates do constitucionalismo, com cuja gramática fora criado. A família prezava-o muito mas passava adiante, receando uma recaída no único musicólogo da casa, recordando como já fora difícil convencê-lo da inutilidade de compor uma obra sinfónica sobre a epopeia africana dos portugueses do século a que pertencia, o XIX.

Oitenta anos depois, a questão de pertencer ao lado certo ou ao lado errado da História ainda se coloca com alguma veemência. Com o tempo, habituei-me a pertencer ao lado minoritário, aquele que foi condenado à derrota desde a partida do Senhor Dom Miguel para Génova. A minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família, acha que já é tempo de fazer as pazes com o país. Eu tento responder que a conciliação entre a Pátria e este grupo de minhotos que apreciam genealogia e botânica já foi preparada e executada há bastante tempo. Pessoalmente, dou o assunto como encerrado. Os portugueses de hoje ignoram a História, acreditam na existência de um paraíso particular cheio de auto-estradas e telemóveis, e desconfiam de toda e qualquer espécie de pessimismo. Com isto não conquistaram a felicidade, mas endividaram-se com aplicação e método e, em geral, passam com dificuldade pelas crises que não compreendem. O velho Doutor Homem, meu pai, assegurava que os portugueses são capazes de passar uma vida inteira a viver a vida que lhes não pertence, só pelo receio de encararem a sua imagem ao espelho. Pode ser; há um pouco de misantropia na sua pregação, mas o essencial é isso.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Novembro 2011