Da necessidade de esquecer a morte
Do primeiro dia de cada ano até ao último dia das nossas vidas podemos esperar as coisas do costume: súbitas mudanças de meteorologia, catástrofes naturais, repentinas alterações do equilíbrio das almas que nos rodeiam (geralmente na direcção do abismo, comprovando o que desde há muito se sabe sobre a fragilidade da natureza humana) – e a morte. Tudo o resto são contingências sem ordem nem regra e mesmo a meteorologia, depois dos anos em que o Dr. Anthymio de Azevedo dominava os interesses maiores dos nossos serões televisivos, deixou de ter princípio, meio e fim.
A Doutora Maria Filomena Mónica escreveu um livro sobre a morte; não há nada tão distante como o primeiro e o segundo termo dessa relação, ou seja, a autora e o assunto do livro (tratado com o conhecimento e o rigor de uma socióloga). A morte é um assunto para espíritos jovens, que se entretêm a observá-la como as coisas devem ser observadas para se poder ter sobre elas uma visão de conjunto: de longe. O nosso mundo há muito que abandonou o desejo de Razão; as minhas irmãs acreditam que há nas religiões orientais, nas da América Latina e de África (a Oceania está ainda fora das suas amplas jurisdições) uma presciência que nos falta, a nós, pobres ocidentais que leram ‘O Monte do Vendavais’, ou franziram o sobrolho diante do ‘Tristram Shandy’, ou se comoveram com o primeiro filme sonoro ou recordam a ida do homem à Lua. Eu compreendo-as bem; apreciam as coisas de longe, emocionam-se diante das epifanias estranhas ao seu mundo original, acham um colorido perfeito nos fragmentos de sagrado que vêm das savanas de África ou das estepes da Ásia, onde a morte é uma passagem anunciada e, aparentemente, diluída nos mistérios de outra vida.
A Tia Benedita, criada no catolicismo mais conservador – para onde teve o cuidado de guiar toda a família –, não tinha opinião sobre o assunto. O último mistério da vida não era a morte mas, como boa católica, a extrema unção, uma espécie de pacificação conseguida em vida e garantida aos vivos. Hoje vejo algumas vantagens nessa visão pouco melodramática e muito menos poética, mas não corro o risco de mencioná-las, porque a morte é um assunto dos vivos consigo mesmos. O tema, triste e soturno, desperta em mim lembranças inoportunas: Dona Ester, minha mãe, caminhando na ligeira arriba de uma praia vizinha de Moledo; o velho Doutor Homem, meu pai, folheando o seu ‘Telegraph’ desactualizado há semanas ou escolhendo um lenço para o bolso do casaco; eu próprio, assistindo a uma regata no rio, em Cerveira, em plena Páscoa de 1959. Nunca soube porquê e nunca me importei.
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Junho 2011
A Doutora Maria Filomena Mónica escreveu um livro sobre a morte; não há nada tão distante como o primeiro e o segundo termo dessa relação, ou seja, a autora e o assunto do livro (tratado com o conhecimento e o rigor de uma socióloga). A morte é um assunto para espíritos jovens, que se entretêm a observá-la como as coisas devem ser observadas para se poder ter sobre elas uma visão de conjunto: de longe. O nosso mundo há muito que abandonou o desejo de Razão; as minhas irmãs acreditam que há nas religiões orientais, nas da América Latina e de África (a Oceania está ainda fora das suas amplas jurisdições) uma presciência que nos falta, a nós, pobres ocidentais que leram ‘O Monte do Vendavais’, ou franziram o sobrolho diante do ‘Tristram Shandy’, ou se comoveram com o primeiro filme sonoro ou recordam a ida do homem à Lua. Eu compreendo-as bem; apreciam as coisas de longe, emocionam-se diante das epifanias estranhas ao seu mundo original, acham um colorido perfeito nos fragmentos de sagrado que vêm das savanas de África ou das estepes da Ásia, onde a morte é uma passagem anunciada e, aparentemente, diluída nos mistérios de outra vida.
A Tia Benedita, criada no catolicismo mais conservador – para onde teve o cuidado de guiar toda a família –, não tinha opinião sobre o assunto. O último mistério da vida não era a morte mas, como boa católica, a extrema unção, uma espécie de pacificação conseguida em vida e garantida aos vivos. Hoje vejo algumas vantagens nessa visão pouco melodramática e muito menos poética, mas não corro o risco de mencioná-las, porque a morte é um assunto dos vivos consigo mesmos. O tema, triste e soturno, desperta em mim lembranças inoportunas: Dona Ester, minha mãe, caminhando na ligeira arriba de uma praia vizinha de Moledo; o velho Doutor Homem, meu pai, folheando o seu ‘Telegraph’ desactualizado há semanas ou escolhendo um lenço para o bolso do casaco; eu próprio, assistindo a uma regata no rio, em Cerveira, em plena Páscoa de 1959. Nunca soube porquê e nunca me importei.
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Junho 2011