domingo, junho 05, 2011

As dúvidas naturais sobre a ironia de um velho

A minha sobrinha Maria Luísa tem dúvidas sobre o seu voto nestas eleições. A eleitora do Bloco de Esquerda sempre achou que a liberalização do haxixe, o casamento entre cavalheiros ou o fim do sigilo bancário e as “aulas de educação sexual” eram motivos essenciais para definir o seu voto.

Acontece que, passada uma década de heróicos combates contra as classes médias e o os cavernícolas de todas as tendências, tudo isso são bandeiras já içadas nos terreiros da política. Tivemos algumas discussões e limitei-me a esmorecer depois de compreender que Marx e Engels tinha sido activistas do casamento homossexual. Várias vezes insisti que o casamento das outras pessoas não me interessava grandemente e, até, que me era indiferente – desde que me garantissem não ser convidado para a boda. Achei mesmo controverso que o casamento, a reprodução e a constituição de famílias –os horrores dos últimos dois séculos burgueses – se tivessem transformado em bandeiras da esquerda. Pessoalmente, cheguei a argumentar que toda a gente tinha direito à sua razoável dose de infelicidade e que isso devia ser constitucionalmente garantido.

Os meus sobrinhos foram o produto da educação liberal ministrada por famílias conservadoras. Desde a adolescência que promoveram cerimónias rituais para consumir haxixe entre os pinhais de Moledo. Eu mantive aquela natural e hipócrita neutralidade, na presunção de que o que eu ignoro não existe. Cansado de salazarismo, mantive-me de pés atrás em relação ao sigilo bancário, com a promessa de depositar as minhas economias num banco de Vigo mal o meu banco pensasse em afixar à porta o extracto das minhas poupanças.

Finalmente, acedi em que a vida está difícil para a esquerda. Pagar a dívida, não pagar a dívida – tudo se resume a isso hoje em dia. Os antepassados dos Homem contraíram dívidas astronómicas ao longo das várias gerações e mudaram várias vezes de vida até conseguirem pagá-las com a honra e com o trabalho. A minha sobrinha acha que o país não deve pagar a dívida, aceitando que as grandes despesas com auto-estradas e edifícios públicos são, afinal, um direito natural. Expliquei com insensatez que não se pode viver a vida independentemente das contas ao fim do mês. Maria Luísa debate-se com este problema na sua vida porque há clientes seus que não liquidam as suas facturas. Eu respondo, sem ironia, que a vida está difícil e que deve ser compreensiva ao ponto de “reestruturar a dívida”. Ela julga ver nesta proposta um sarcasmo direitista e eu não a desminto. Mas tem dúvidas, tem.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 Junho 2011