Os antepassados sem juízo
Uma das tradições dos Homem (um conjunto notável e desorganizado de lendas, documentos, mentiras, evocações, folhas arrancadas aos nobiliários, cartas amarelecidas pelos séculos, além de hábitos de vaidade inclemente) sustenta que um dos nossos antepassados assistiu aos últimos momentos de el-Rei D. Sancho II em Toledo, na companhia de Gonçalo Anes de Portocarrero, um poeta que a península devia honrar.
Outra dessas tradições, evidentemente nunca confirmadas mas a que a Tia Benedita (a matriarca da família e garante do miguelismo de outrora) atribuiu sempre a matriz de uma verdade histórica insuspeita, foi a camaradagem que um vetusto avô do Minho manteve com São Teotónio, o padroeiro de Valença, peregrino a Jerusalém, padre Crúzio de Coimbra e conselheiro do nosso primeiro rei.
Não há sinais dessas ramificações na genealogia da pátria, mas em momentos de discussão, a academia dos Homem, reunida ao almoço dominical e pacificador de Moledo, não precisa de provas irrefutáveis nem de documentos vindos do Tombo. Basta-lhe a evidência familiar, que é sarcástica e desinteressada. Não há herói miguelista que não tenha conhecido um Homem nas faldas das serras ou nos vinhedos devastados do Minho, nem relicário do Velho Regime que não tenha uma história para contar. Esta inclinação da família pela história dos avôs próprios ou alheios tem a ver, diz a minha sobrinha Maria Luísa, com a necessidade de não pertencer aos “tempos modernos”. Pode ser. A Tia Benedita manteve até ao fim da vida inimigos invisíveis e imperecíveis, onde incluía o dr. Afonso Costa e os espectros dos liberais mais populares do Constitucionalismo, sobretudo os seus vates e demagogos. Pertencer aos “tempos modernos” foi, aliás, coisa que nunca nos mereceu grandes preocupações – embora Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, se lamente amargamente diante do velho frigorífico que há anos nos garante um sofrível refrigério.
A Dra. Celina, da biblioteca de Caminha, a quem contei estas pequenas desavenças com a nossa genealogia e os nossos electrodomésticos, afiançou-me que é assim em todo o lado. Ela vinha trazer-me uma cópia de um autor galego que menciona a Serra de Arga como um santuário do nosso Noroeste. Farto dos rochedos que guarda as Rias, e já insensível às lendas da velha Galiza obscura de Santiago e do Lugo, o historiador encantou-se com os pinhais amenos de Âncora e achou-lhes ar de nobreza antiga. Fez bem. Deve ter havido um antepassado dos Homem a confirmá-lo, nas suas ossadas do século, digamos, XIV. A Dra. Celina sorriu.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Junho 2011
Outra dessas tradições, evidentemente nunca confirmadas mas a que a Tia Benedita (a matriarca da família e garante do miguelismo de outrora) atribuiu sempre a matriz de uma verdade histórica insuspeita, foi a camaradagem que um vetusto avô do Minho manteve com São Teotónio, o padroeiro de Valença, peregrino a Jerusalém, padre Crúzio de Coimbra e conselheiro do nosso primeiro rei.
Não há sinais dessas ramificações na genealogia da pátria, mas em momentos de discussão, a academia dos Homem, reunida ao almoço dominical e pacificador de Moledo, não precisa de provas irrefutáveis nem de documentos vindos do Tombo. Basta-lhe a evidência familiar, que é sarcástica e desinteressada. Não há herói miguelista que não tenha conhecido um Homem nas faldas das serras ou nos vinhedos devastados do Minho, nem relicário do Velho Regime que não tenha uma história para contar. Esta inclinação da família pela história dos avôs próprios ou alheios tem a ver, diz a minha sobrinha Maria Luísa, com a necessidade de não pertencer aos “tempos modernos”. Pode ser. A Tia Benedita manteve até ao fim da vida inimigos invisíveis e imperecíveis, onde incluía o dr. Afonso Costa e os espectros dos liberais mais populares do Constitucionalismo, sobretudo os seus vates e demagogos. Pertencer aos “tempos modernos” foi, aliás, coisa que nunca nos mereceu grandes preocupações – embora Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, se lamente amargamente diante do velho frigorífico que há anos nos garante um sofrível refrigério.
A Dra. Celina, da biblioteca de Caminha, a quem contei estas pequenas desavenças com a nossa genealogia e os nossos electrodomésticos, afiançou-me que é assim em todo o lado. Ela vinha trazer-me uma cópia de um autor galego que menciona a Serra de Arga como um santuário do nosso Noroeste. Farto dos rochedos que guarda as Rias, e já insensível às lendas da velha Galiza obscura de Santiago e do Lugo, o historiador encantou-se com os pinhais amenos de Âncora e achou-lhes ar de nobreza antiga. Fez bem. Deve ter havido um antepassado dos Homem a confirmá-lo, nas suas ossadas do século, digamos, XIV. A Dra. Celina sorriu.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Junho 2011
<< Home