A chuva de Moledo e os amores de outrora
As pessoas fotografam agora as ruínas da praia: riscos de sargaço na areia, dunas desbastadas, ramos caídos. Será uma memória quando, em Junho e Julho, iniciarem o ritual da época e puderem, ao crepúsculo, contemplar o mais belo mar do hemisfério.
A minha sobrinha Maria Luísa consegue estacionar o carro diante de um dos dois cafés e leva-me em peregrinação sentimental pelo meio da chuva. Ela acha que o clima, o cenário e a composição em geral (o retrato de Turner que se equilibra sobre a praia, no fundo) favorecem a leitura, ou do jornal ou do romance da moda, à mesa do café. Tem alguma razão; os lugares seleccionam os frequentadores, e reconheço que, além de melancólico, o ambiente é propício a um certo recolhimento, ao uso de gabardinas e de calçado para atravessar os charcos. Na véspera dos meus noventa anos, a literatura é um mal e um bem. Com esta idade já se sabe que a vida é um caminho à beira do precipício e que uma certa ironia acaba por ser um bálsamo para o cepticismo, a tristeza e a tendinite. Quando alguém passa de bicicleta lá fora (as vidraças dos cafés são uma bênção para os preguiçosos, especialmente no Inverno), recordo Dona Ester, minha mãe, entusiasta do exercício físico e da indiferença diante dos Elementos, a que ela não atribuía grande importância – quer chovesse, quer viesse a canícula do Estio, ela achava que o reumatismo e a melancolia não eram senão o resultado da preguiça portuguesa. Setenta ou oitenta anos depois reconheço que ela tinha razão, porque apetece enfrentar o temporal em benefício da paisagem. Tal como os grandes amores de outrora, a paisagem é um bem inestimável.
in Domingo - Correio da Manhã - 27 Fevereiro 2011