A felicidade à vista de Moledo
A chuva de Moledo, que é um empréstimo da vizinha Galiza, com os seus tons de cinza e verde, foi interrompida pela Dra. Celina, que veio devolver um exemplar de ‘Onde Está a Felicidade?', uma edição de 1885 que passou de estante em estante até aterrar nesta, diante da minha mesa, definitiva. Eu tinha-lho emprestado em troca de uns fac-símiles de António Pedro. O livrinho de Camilo é, no fundo, uma espécie de metáfora acerca dos males e dos bens do mundo, e a pergunta do título faz sentido.
Com esta idade, deitando-me cedo, despertando ainda com o silêncio da madrugada, não me chega o tempo de pensar no assunto - a felicidade é uma matéria para noctívagos, se me faço entender: ou seres românticos que deambulam debaixo do "plúmbeo céu", ou poetas que herdaram o génio duvidoso daqueles versejadores do constitucionalismo que compunham sonetos nas secretarias das repartições e dos tribunais.
Dona Ester, minha mãe, desconfiava do tema; ela acreditava no poder regenerador do Verão, do iodo administrado sem barreiras e dos romances de aventuras - e teve a sorte de não conhecer João de Lemos e o seu poema ‘A Lua de Londres' onde vêm esses versos fatais: "É noite. O astro saudoso/ rompe a custo um plúmbeo céu,/ tolda-lhe o rosto formoso/ alvacento, húmido véu, etc." O velho Doutor Homem, meu pai, glosava as décimas do poema com trejeitos de sátiro, imitando o Eusebiozinho de ‘Os Maias', vestido de veludo e transpirando de febre.
Havia uma razão para João de Lemos ser conhecido paredes dentro - tinha nascido na Régua e o meu avô, como administrador de quintas do Douro, coleccionava excentricidades; por isso guardava um exemplar amarelecido de ‘Serões da Aldeia', um dos mais funestos livros de prosa do século XIX (de poesia, o meu avô apenas manteve contactos com Guerra Junqueiro por motivos agrícolas - ou para contemplar os bucólicos laranjais de Barca d'Alva). Bulhão Pato diz que ‘A Lua de Londres' foi composto por causa das saudades que o vate da Regeneração, estando na capital inglesa, sentiu "do choupal sussurrante e estrelado de pirilampos".
Seja como for, a chuva de Moledo interrompeu-se por instantes. Não é uma chuva romântica; cai sobre os pinhais e lembra encontros fugazes com a felicidade, despedidas sem sentido, ruínas de muros atrás das dunas, passeios que enfrentam as intempéries. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, recomendou que aproveitasse a interrupção no temporal para fazer a minha pequena caminhada. Ela sabe que a felicidade são pequenas coisas.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Fevereiro 2011
Com esta idade, deitando-me cedo, despertando ainda com o silêncio da madrugada, não me chega o tempo de pensar no assunto - a felicidade é uma matéria para noctívagos, se me faço entender: ou seres românticos que deambulam debaixo do "plúmbeo céu", ou poetas que herdaram o génio duvidoso daqueles versejadores do constitucionalismo que compunham sonetos nas secretarias das repartições e dos tribunais.
Dona Ester, minha mãe, desconfiava do tema; ela acreditava no poder regenerador do Verão, do iodo administrado sem barreiras e dos romances de aventuras - e teve a sorte de não conhecer João de Lemos e o seu poema ‘A Lua de Londres' onde vêm esses versos fatais: "É noite. O astro saudoso/ rompe a custo um plúmbeo céu,/ tolda-lhe o rosto formoso/ alvacento, húmido véu, etc." O velho Doutor Homem, meu pai, glosava as décimas do poema com trejeitos de sátiro, imitando o Eusebiozinho de ‘Os Maias', vestido de veludo e transpirando de febre.
Havia uma razão para João de Lemos ser conhecido paredes dentro - tinha nascido na Régua e o meu avô, como administrador de quintas do Douro, coleccionava excentricidades; por isso guardava um exemplar amarelecido de ‘Serões da Aldeia', um dos mais funestos livros de prosa do século XIX (de poesia, o meu avô apenas manteve contactos com Guerra Junqueiro por motivos agrícolas - ou para contemplar os bucólicos laranjais de Barca d'Alva). Bulhão Pato diz que ‘A Lua de Londres' foi composto por causa das saudades que o vate da Regeneração, estando na capital inglesa, sentiu "do choupal sussurrante e estrelado de pirilampos".
Seja como for, a chuva de Moledo interrompeu-se por instantes. Não é uma chuva romântica; cai sobre os pinhais e lembra encontros fugazes com a felicidade, despedidas sem sentido, ruínas de muros atrás das dunas, passeios que enfrentam as intempéries. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, recomendou que aproveitasse a interrupção no temporal para fazer a minha pequena caminhada. Ela sabe que a felicidade são pequenas coisas.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Fevereiro 2011
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