As pessoas que queriam desaparecer
O tio Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, “desaparecia de circulação” temporária e periodicamente. O convívio com o género humano não lhe era prejudicial, propriamente dito, nem lhe causava doenças imperscrutáveis; simplesmente, várias necessidades o afligiam e não tivemos conhecimento de todas. Passava a maior parte do ano a dedicar-se à actividade que lhe garantia uma administração razoável da sua conta bancária, e dedicava um período decente a “desaparecer da circulação” – o que significava que seria surpreendente receberem-se notícias da sua existência durante esses dois meses, uma média compreensível e aceitável.
Este ritmo só era possível porque lhe faltavam outros bens, nomeadamente uma família para manter e um emprego regular, sujeito à lei geral. Os Homem habituaram-se, desde que perceberam que o regime tinha mudado definitivamente (o que aconteceu há cento e cinquenta anos, mais ou menos), a cumprir a lei mais do que todos os outros; isto garantia-lhes sossego e paz civil, ausência de fiscais e meirinhos à porta dos seus refúgios, e distância em relação a credores. Por mais aziagos e tumultuosos que fossem os tempos, havia uma barreira de incomunicabilidade entre a família e o resto do mundo (normalmente confundida com certa e inegável misantropia). Isto, salvo erro, garantia certa liberdade de movimentos. Desde há cento e cinquenta anos, por arredondamento, que os Homem “desapareceram da circulação”. Vão à farmácia, recebem telefonemas, frequentam a praia, pagam generosamente os impostos, mantêm boas relações com conhecidos e, sobretudo, com desconhecidos – mas sentam-se nas filas do meio, perto das coxias de saída. Tentei explicar esta “filosofia” à minha sobrinha Maria Luísa, prevenindo-a de que, logo por detrás, está um certo “complexo de superioridade”, garantido por anos de sobrevivência no anonimato.
É decerto um exagero. O velho Doutor Homem, meu pai, recordava a forma como a Tia Benedita – matriarca e guardiã da família, em simultâneo – olhava para o assunto: com indiferença. Os muros do casarão de Ponte de Lima não tinham fosso a resguardá-los; limitavam-se a acompanhar a floração das rosas de Santa Teresinha durante o mês de Maio e a advertir a populaça familiar de que estava tudo muito bem mas evitassem dar vivas à República. Com o tempo, fomos apreciando pantomineiros. Na política, na literatura, na vida pública – mas nunca passaram de pantomineiros. Eles sim, estavam (e estão) em circulação. É um grande cansaço.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Fevereiro 2011
Este ritmo só era possível porque lhe faltavam outros bens, nomeadamente uma família para manter e um emprego regular, sujeito à lei geral. Os Homem habituaram-se, desde que perceberam que o regime tinha mudado definitivamente (o que aconteceu há cento e cinquenta anos, mais ou menos), a cumprir a lei mais do que todos os outros; isto garantia-lhes sossego e paz civil, ausência de fiscais e meirinhos à porta dos seus refúgios, e distância em relação a credores. Por mais aziagos e tumultuosos que fossem os tempos, havia uma barreira de incomunicabilidade entre a família e o resto do mundo (normalmente confundida com certa e inegável misantropia). Isto, salvo erro, garantia certa liberdade de movimentos. Desde há cento e cinquenta anos, por arredondamento, que os Homem “desapareceram da circulação”. Vão à farmácia, recebem telefonemas, frequentam a praia, pagam generosamente os impostos, mantêm boas relações com conhecidos e, sobretudo, com desconhecidos – mas sentam-se nas filas do meio, perto das coxias de saída. Tentei explicar esta “filosofia” à minha sobrinha Maria Luísa, prevenindo-a de que, logo por detrás, está um certo “complexo de superioridade”, garantido por anos de sobrevivência no anonimato.
É decerto um exagero. O velho Doutor Homem, meu pai, recordava a forma como a Tia Benedita – matriarca e guardiã da família, em simultâneo – olhava para o assunto: com indiferença. Os muros do casarão de Ponte de Lima não tinham fosso a resguardá-los; limitavam-se a acompanhar a floração das rosas de Santa Teresinha durante o mês de Maio e a advertir a populaça familiar de que estava tudo muito bem mas evitassem dar vivas à República. Com o tempo, fomos apreciando pantomineiros. Na política, na literatura, na vida pública – mas nunca passaram de pantomineiros. Eles sim, estavam (e estão) em circulação. É um grande cansaço.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Fevereiro 2011
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