Visitação a Camilo e ao Portugal velho
Periodicamente, releio ‘A Brasileira de Prazins’ numa das velhas edições herdadas da ortografia antiga, encadernada na Rua Firmeza e transportada do Porto para Moledo com a minha mudança para esta casa onde tenho vivido os últimos vinte anos. O prazer que se retira de ler livros desses, já relidos e muito envelhecidos, tocados por humidades sazonais – nunca o consegui explicar e creio que qualquer explicação seria rebuscada. Limito-me a regressar às primeiras leituras, às primeiras páginas, às primeiras impressões. A minha sobrinha acha que Camilo Castelo Branco e, por imodéstia, eu próprio, somos os derradeiros sobreviventes do miguelismo nesta família. Ele, o suicida, pousado nas estantes; eu, sobrevivendo diante delas. A jovem esquerdista, mesmo tendo dobrada a idade das melhores personagens de Balzac, encontra uma melancolia inédita nesta resistência ao tempo. Ela vê em nós o resto de uma geração de aventureiros contemporâneos de amores contrariados e de aldeias que testemunharam tiroteios e os costumes do Portugal Velho – pela razão simples de que hoje em dia não há amores contrariados e ninguém sabe o que foi a Maria da Fonte. O Portugal Velho, por seu lado, foi sempre um pouco bandoleiro, controverso e violento. Há nesse retrato a memória ou o selo de uma certa grandeza que os manuais arrumam na categoria de simples velharia iconoclasta, mas que a Pátria aprendeu a desprezar com insistência e ignorância.
O drama do Zeferino das Lamelas (de ‘A Brasileira de Prazins’) merecia um estudo de época, mais do que a nossa comiseração. Armado de mosquete, alcoolizado, trágico, cavalgando pelas encostas do Lima ou do Arga, o pobre pedreiro famalicense arrasta consigo todas as indignidades dos derrotados – mais do que o desespero dos que estão condenados à morte. Naquele tempo morria-se valentemente, sucumbia-se sob um cheiro de pólvora e de sangue a coberto das noites escuras. Os heróis de Camilo são os últimos salteadores da História, antes do cosmopolitismo e da delicadeza dos endecassílabos constitucionais, compostos nas secretarias; têm a certeza de que nunca serão compreendidos ou absolvidos pelo seu anacronismo. São velhos; morrem, marcados pelas feridas de guerra ou pelas clavinas dos salteadores; ou raramente sobrevivem enterrados em bibliotecas que cheiram a rapé e a genebra. Tenho por eles uma secreta admiração de vencido e de companheiro de infortúnio. Nunca poderia ter sido como eles – faltou-me o estofo de herói e a coragem do aventureiro. Sou apenas um autodidacta do reaccionarismo.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Maio 2009
O drama do Zeferino das Lamelas (de ‘A Brasileira de Prazins’) merecia um estudo de época, mais do que a nossa comiseração. Armado de mosquete, alcoolizado, trágico, cavalgando pelas encostas do Lima ou do Arga, o pobre pedreiro famalicense arrasta consigo todas as indignidades dos derrotados – mais do que o desespero dos que estão condenados à morte. Naquele tempo morria-se valentemente, sucumbia-se sob um cheiro de pólvora e de sangue a coberto das noites escuras. Os heróis de Camilo são os últimos salteadores da História, antes do cosmopolitismo e da delicadeza dos endecassílabos constitucionais, compostos nas secretarias; têm a certeza de que nunca serão compreendidos ou absolvidos pelo seu anacronismo. São velhos; morrem, marcados pelas feridas de guerra ou pelas clavinas dos salteadores; ou raramente sobrevivem enterrados em bibliotecas que cheiram a rapé e a genebra. Tenho por eles uma secreta admiração de vencido e de companheiro de infortúnio. Nunca poderia ter sido como eles – faltou-me o estofo de herói e a coragem do aventureiro. Sou apenas um autodidacta do reaccionarismo.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Maio 2009
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