A máquina a vapor e a melancolia do rinoceronte
A biblioteca dos Homem conserva em razoável estado alguns volumes preciosos que fazem parte da história da família e dos seus pecados políticos. Estes pecados, como o leitor entenderá, prolongaram-se durante muitos anos e vão até ao primeiro quartel do século anterior, altura em que, exaustos e conformados, nos dedicámos à sobrevivência, à bibliofilia, ao arroz de pato e à anglofilia, embora não por esta ordem. Crê-se que, com a instalação da República – e um pouco depois dela –, já não valia a pena tentar explicar às novas gerações que a História tinha defeitos na forma como tinha sido escrita. Definitivamente, éramos os derrotados. A família, mesmo conservando as diferenças habituais manteve a tentação (repetida várias vezes até ser impossível enumerá-las) de ficar no lado errado da História. Isto, que poderia ter favorecido a melancolia e o ressentimento, acabou por fazer de nós seres orgulhosos, pacíficos e, surpreendentemente, sem úlceras.
Essa bibliografia reaccionária repousa em Ponte de Lima, tranquila, e ilustra as paredes de algumas salas e de um corredor onde – ao fundo – se encontra a cópia restaurada e perfeita de um retrato do senhor Dom Miguel. No Verão passado, dada a minha qualidade de almoxarife dessas estantes, trouxe para Moledo os ‘Entretenimentos Cosmológicos, Geográficos e Históricos’, de José Acúrsio das Neves, um livrinho de 1826 onde, à mistura com curiosidades do seu tempo, enumera as vantagens da introdução da máquina a vapor. O país merecia-o, certamente. Ocupado em batalhar pela Carta, pelas cortes de Lamego e pela constituição de 22, o país não estava desperto, ainda, para a necessidade da máquina a vapor e o dinheiro disponível estava reservado para a tropa.
O meu interesse no assunto é residual e apenas tem a ver com a nostalgia do que poderia ter sido o país. É essa a nossa principal melancolia, passando em revista os últimos duzentos anos ou, indo mais atrás, até à embaixada de D. Manuel ao Papa, comandada por Tristão da Cunha, uma exibição das riquezas do império e onde havia animais de África e da Índia — mas não o exemplar de um rinoceronte que ficou para trás, doente. A nossa verdadeira melancolia é a do rinoceronte (Albrecht Dürer gravou-o para nossa glória) que nunca chegou a pisar o chão de Roma. Depois disso houve o que houve, chegaram as invasões francesas, a partida da corte para o Rio, o Ipiranga e a Concessão de Évora Monte. A nossa nostalgia não termina. Podíamos ter sido tudo o que deixámos para trás.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Junho 2010
Essa bibliografia reaccionária repousa em Ponte de Lima, tranquila, e ilustra as paredes de algumas salas e de um corredor onde – ao fundo – se encontra a cópia restaurada e perfeita de um retrato do senhor Dom Miguel. No Verão passado, dada a minha qualidade de almoxarife dessas estantes, trouxe para Moledo os ‘Entretenimentos Cosmológicos, Geográficos e Históricos’, de José Acúrsio das Neves, um livrinho de 1826 onde, à mistura com curiosidades do seu tempo, enumera as vantagens da introdução da máquina a vapor. O país merecia-o, certamente. Ocupado em batalhar pela Carta, pelas cortes de Lamego e pela constituição de 22, o país não estava desperto, ainda, para a necessidade da máquina a vapor e o dinheiro disponível estava reservado para a tropa.
O meu interesse no assunto é residual e apenas tem a ver com a nostalgia do que poderia ter sido o país. É essa a nossa principal melancolia, passando em revista os últimos duzentos anos ou, indo mais atrás, até à embaixada de D. Manuel ao Papa, comandada por Tristão da Cunha, uma exibição das riquezas do império e onde havia animais de África e da Índia — mas não o exemplar de um rinoceronte que ficou para trás, doente. A nossa verdadeira melancolia é a do rinoceronte (Albrecht Dürer gravou-o para nossa glória) que nunca chegou a pisar o chão de Roma. Depois disso houve o que houve, chegaram as invasões francesas, a partida da corte para o Rio, o Ipiranga e a Concessão de Évora Monte. A nossa nostalgia não termina. Podíamos ter sido tudo o que deixámos para trás.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Junho 2010