Uma breve viagem ao século passado
O tio Alfredo Augusto só regressou do Pernambuco depois da morte da Tia Benedita e do dr. Salazar. Não havia relação entre o primeiro facto e os outros dois. Emigrante e desolado, partiu para o Brasil aos vinte e seis anos e regressou aos sessenta e cinco – durante esse tempo veio a Portugal quatro vezes, uma delas coincidindo com a visita do presidente Kubitscheck a Lisboa, com quem se cruzou em Óbidos por mero acaso.
Em Julho de 1970 começaram a chegar a Afife os caixotes que transportavam uma vida em secções – recordações dos trópicos, loiça europeia que viajara duas vezes pelo Atlântico, poeira de quarenta anos dedicados à cana de açúcar e ao café e uma reserva de charutos de capa escura que daria para outros quarenta anos de imigração nos sertões do Brasil. O Tio Alfredo Augusto foi o único agricultor da família e aquele que mais tempo resistiu aos trópicos mas a verdade é que vivia noutro país; a Tia Benedita desconfiava tremendamente do Brasil que, na sua avaliação, era uma nódoa de lascívia e a causa de todos os males que atravessaram o século dos seus pais e avós, deixando a pátria entregue aos inimigos do trono e do altar. Trata-se de uma injustiça que o tempo não reparará.
Quando, dois meses depois, tinham já sido desalojados todos os bens que chegaram nesses caixotes, o tio Alfredo Augusto atravessou o mar de avião, depois de, durante um mês em Copacabana, liquidar quarenta anos de vida, trocando-os por papéis bancários e títulos de investimento que com o tempo perderam qualquer interesse e utilidade. Só então regressou à pátria, exactamente como os antigos brasileiros torna-viagem do século passado, ao lado de um séquito muito reduzido de criadas que o acompanhou até ao fim da vida e que, aos domingos, lhe preparava guisado de quiabos e abóbora com carne seca. Os seus fatos largos, tropicais, os chapéus, os charutos, a rede que acolhia as suas sestas numa varanda, e um resto de sotaque que nunca perdeu totalmente – tal era o conjunto reunido da herança brasileira da família. Morreu tranquilamente em 1983 mas o seu testamento tinha sido entregue, muito antes, aos cuidados do irmão e advogado de sempre, o velho Doutor Homem, meu pai, que o considerava um homem honrado. Nele, deixava uma boa parte dos bens (na altura, ainda consideráveis), acumulados ao longo desses anos de trópicos, às criadas que tinham cuidado da sua gota, do seu estômago e da sua solidão.
Era uma figura de romance. Nunca soubemos nada da sua vida. Ainda hoje acreditamos que não teve amores, nem doenças, nem descendência. Desapareceu como poeira.
in Domingo - Correio da Manhã - 13 de Junho 2010
Em Julho de 1970 começaram a chegar a Afife os caixotes que transportavam uma vida em secções – recordações dos trópicos, loiça europeia que viajara duas vezes pelo Atlântico, poeira de quarenta anos dedicados à cana de açúcar e ao café e uma reserva de charutos de capa escura que daria para outros quarenta anos de imigração nos sertões do Brasil. O Tio Alfredo Augusto foi o único agricultor da família e aquele que mais tempo resistiu aos trópicos mas a verdade é que vivia noutro país; a Tia Benedita desconfiava tremendamente do Brasil que, na sua avaliação, era uma nódoa de lascívia e a causa de todos os males que atravessaram o século dos seus pais e avós, deixando a pátria entregue aos inimigos do trono e do altar. Trata-se de uma injustiça que o tempo não reparará.
Quando, dois meses depois, tinham já sido desalojados todos os bens que chegaram nesses caixotes, o tio Alfredo Augusto atravessou o mar de avião, depois de, durante um mês em Copacabana, liquidar quarenta anos de vida, trocando-os por papéis bancários e títulos de investimento que com o tempo perderam qualquer interesse e utilidade. Só então regressou à pátria, exactamente como os antigos brasileiros torna-viagem do século passado, ao lado de um séquito muito reduzido de criadas que o acompanhou até ao fim da vida e que, aos domingos, lhe preparava guisado de quiabos e abóbora com carne seca. Os seus fatos largos, tropicais, os chapéus, os charutos, a rede que acolhia as suas sestas numa varanda, e um resto de sotaque que nunca perdeu totalmente – tal era o conjunto reunido da herança brasileira da família. Morreu tranquilamente em 1983 mas o seu testamento tinha sido entregue, muito antes, aos cuidados do irmão e advogado de sempre, o velho Doutor Homem, meu pai, que o considerava um homem honrado. Nele, deixava uma boa parte dos bens (na altura, ainda consideráveis), acumulados ao longo desses anos de trópicos, às criadas que tinham cuidado da sua gota, do seu estômago e da sua solidão.
Era uma figura de romance. Nunca soubemos nada da sua vida. Ainda hoje acreditamos que não teve amores, nem doenças, nem descendência. Desapareceu como poeira.
in Domingo - Correio da Manhã - 13 de Junho 2010
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