Leituras de Verão e do breve Outono
Durante o Verão, os areais de Moledo assemelham-se – já o
referi nestas crónicas há uns anos – a uma assembleia magna da Academia Nobel.
É um momento de felicidade verificar que a competição entre páginas de papel e
grãos de areia permanece inalterada desde há anos; os romances de praia deviam
ser classificados como a categoria de monumento nacional no seu conjunto,
independentemente da sua qualidade ou da forma como são lidos. Há, aqui, duas
opiniões distintas: a minha sobrinha Maria Luísa insiste em que as dunas de
Moledo, a coberto da ventania, são recantos prodigiosos que poderiam ser
patrocinados por qualquer biblioteca; a Dra. Celina, a nossa bibliotecária de
Caminha, sorri à ideia porque não se imagina a distribuir cotas de livros a
leitores renitentes que os manchariam de bronzeador ou lhes surripiariam as
páginas.
O velho Doutor Homem, meu pai, não era um curioso da
genealogia mas apreciava, como todos os Homem, momentos de maledicência.
Recordo-o sentado na sua cadeira de praia, debaixo de um toldo de riscas azuis,
a ler uma genealogia novecentista em busca das origens de um capitão-mor da
Paraíba que casara com uma senhora de Darque, onde vivera nas penumbras da Casa
de Bragança, que ali tinha jurisdição. Duvido que a leitura tivesse grande
interesse para os seus padrões literários, mas assemelhava-se um pouco às
minúcias que ainda hoje se discutem sobre a relação entre Thomas More e
Henrique VIII. A questão elucidou-o afinal acerca das origens de um casarão de
Santa Cristina de Malta, de onde se via o mar de Vila do Conde – como convinha
a um torna-viagem do Pernambuco, onde (no Recife) fora livreiro depois de
escolhidos os vencedores da batalha de Guararapes. Ao fim da tarde, munido
desse manancial de informações inúteis, o velho Doutor Homem, meu pai,
considerava o seu dia bem passado.
Duvido que hoje alguém escolha a ‘Genealogia das Famílias
Santomenses’ para apimentar os seus dias de época balnear, a menos que seja
amigo do Dr. Jorge Forjaz, que se dedicou ao assunto com bravura. Por agora, os
areais despedem-se dos romances de ocasião, lidos durante o Verão. Nestes
derradeiros sábados de sol há na praia um resto de vapores literários, como
sustenta Maria Luísa; as capas, já gastas, revelam gostos sem pretensão e horas
de leitura amena. A brisa do crepúsculo já exige um agasalho e não favorece nem
a leitura de jornais nem a erudição do velho Doutor Homem, meu pai. Gosto,
nestas ocasiões, de ver passar as bicicletas rente à respiração das ondas.
in Domingo - Correio da Manhã - 7 Outubro 2012