Os Portugueses
O segundo divórcio da minha sobrinha foi recebido com a mesma indiferença carinhosa com que se soube da notícia do seu segundo casamento. Os Homem nunca foram muito dados a escandalizar-se e, salvo erro, a última vez que o velho Doutor Homem (meu pai) enrubesceu de indignação moral ocorreu quando chegaram à casa do Porto, numa revista da época, as fotografias em que o Doutor Salazar olhava, com uma concupiscência sem veneno (o que era pior), as suavíssimas pernas de Christine Garnier. A sua indignação era mais dirigida contra a jornalista do que contra o antigo seminarista; o meu pai nunca compreendeu essa atracção das mulheres pelo homem que queria transformar Portugal num corredor de convento e atribuía o facto à tendência feminina, que ele dizia ser natural, em se deixar seduzir por canalhas e cafajestes.
Uma das minhas irmãs perguntou onde ela se tinha casado. A sobrinha respondeu, com naturalidade, que “no Rio de Janeiro”. “E com um brasileiro?”, voltou ela. “Antes fosse”, murmurou o meu irmão mais velho, pai de Maria Luísa, “mas foi com um português, desses daí.”
A expressão “um português, desses daí” não foi muito comovente, mas dá uma ideia de como as coisas estão hoje em dia. Frequentemente ouço falar “dos portugueses”. Antigamente, eu sabia a quem se referiam – havia uma série de “portugueses” que se poderiam enumerar, de Gonçalo Mendes da Maia a Mouzinho, dos camponeses do Minho aos primeiros colonos do Ilinóis. O tempo tinha descido sobre eles e conferia-lhes aquele halo dos retratos cobertos da poeira que anula as imperfeições e realça as melhores cores. Hoje em dia, isso não tem a menor importância. “Um português, desses daí” significa, realmente, um homem vulgar, capaz de discutir futebol e de identificar as pessoas da televisão. Não há portugueses, propriamente ditos; há uma série de pessoas que vive em Portugal.
Se os meus leitores esperam que eu chore e mencione coisas como “portugueses de antigamente”, eu desiludo-os: acho natural: os “portugueses de antigamente” tinham vícios muito contemporâneos e eram tão velhacos e impertinentes como os de hoje. Por isso, quando ouço falar “dos portugueses” (como na recente campanha eleitoral), duvido bastante das intenções do orador. O que era bom, nas pessoas que vivem em Portugal, era que fossem decentes, que morressem suavemente e vivessem com dignidade. A ideia de sermos “todos portugueses”, que motivou os pequenos ditadores e os presuntivos líderes que arrastaram a glória pelos almanaques, não é uma ideia incontestável e absoluta. Quando as alegrias do futebol ou as conivências da política levam “os portugueses” a pendurar bandeiras nas janelas e a gritar o nome da pátria, isso parece fazer esquecer todas as pequenas misérias, o lixo à beira das estradas ou a maneira como os velhos do meu país morrem abandonados e doentes. Quando as bandeiras se recolhem, as coisas voltam ao que eram. Eu preferia que houvesse menos bandeiras e mais gente a esforçar-se por acordar cedo, por ser razoável ou por aprender as minudências da matemática, essa ciência moderna. Razão porque Portugal precisa menos de portugueses do que de paciência e de aplicação. Quando o meu irmão se referia ao segundo marido da minha sobrinha como “um português, desses daí”, pareceu-me que vi enrubescer o retrato do meu velho avô Homem, administrador de terrenos no Douro e leitor de Guerra Junqueiro. Mas, como as coisas estão, é preferível que falemos de pessoas do que de pátrias. Isto, dito por um Homem, tem o seu peso. O leitor não sabe, mas ao pé disto o segundo divórcio da minha sobrinha é uma minudência sem qualquer interesse. Assim vai a moral.
in Revista Notícias Sábado - 28 Janeiro 2006
Uma das minhas irmãs perguntou onde ela se tinha casado. A sobrinha respondeu, com naturalidade, que “no Rio de Janeiro”. “E com um brasileiro?”, voltou ela. “Antes fosse”, murmurou o meu irmão mais velho, pai de Maria Luísa, “mas foi com um português, desses daí.”
A expressão “um português, desses daí” não foi muito comovente, mas dá uma ideia de como as coisas estão hoje em dia. Frequentemente ouço falar “dos portugueses”. Antigamente, eu sabia a quem se referiam – havia uma série de “portugueses” que se poderiam enumerar, de Gonçalo Mendes da Maia a Mouzinho, dos camponeses do Minho aos primeiros colonos do Ilinóis. O tempo tinha descido sobre eles e conferia-lhes aquele halo dos retratos cobertos da poeira que anula as imperfeições e realça as melhores cores. Hoje em dia, isso não tem a menor importância. “Um português, desses daí” significa, realmente, um homem vulgar, capaz de discutir futebol e de identificar as pessoas da televisão. Não há portugueses, propriamente ditos; há uma série de pessoas que vive em Portugal.
Se os meus leitores esperam que eu chore e mencione coisas como “portugueses de antigamente”, eu desiludo-os: acho natural: os “portugueses de antigamente” tinham vícios muito contemporâneos e eram tão velhacos e impertinentes como os de hoje. Por isso, quando ouço falar “dos portugueses” (como na recente campanha eleitoral), duvido bastante das intenções do orador. O que era bom, nas pessoas que vivem em Portugal, era que fossem decentes, que morressem suavemente e vivessem com dignidade. A ideia de sermos “todos portugueses”, que motivou os pequenos ditadores e os presuntivos líderes que arrastaram a glória pelos almanaques, não é uma ideia incontestável e absoluta. Quando as alegrias do futebol ou as conivências da política levam “os portugueses” a pendurar bandeiras nas janelas e a gritar o nome da pátria, isso parece fazer esquecer todas as pequenas misérias, o lixo à beira das estradas ou a maneira como os velhos do meu país morrem abandonados e doentes. Quando as bandeiras se recolhem, as coisas voltam ao que eram. Eu preferia que houvesse menos bandeiras e mais gente a esforçar-se por acordar cedo, por ser razoável ou por aprender as minudências da matemática, essa ciência moderna. Razão porque Portugal precisa menos de portugueses do que de paciência e de aplicação. Quando o meu irmão se referia ao segundo marido da minha sobrinha como “um português, desses daí”, pareceu-me que vi enrubescer o retrato do meu velho avô Homem, administrador de terrenos no Douro e leitor de Guerra Junqueiro. Mas, como as coisas estão, é preferível que falemos de pessoas do que de pátrias. Isto, dito por um Homem, tem o seu peso. O leitor não sabe, mas ao pé disto o segundo divórcio da minha sobrinha é uma minudência sem qualquer interesse. Assim vai a moral.
in Revista Notícias Sábado - 28 Janeiro 2006