O pior nunca aconteceu
O velho Doutor Homem, meu pai, sobreviveu ao 25 de Abril. Como havia notícias da revolução, adiou o seu passeio matinal e levou guarda-chuva. Ao longo da sua vida conspirara em silêncio contra o regime – muitos não compreendiam a existência de um conservador (a que faltava um país onde se pudesse ser conservador) que abominasse o dr. Salazar e o seu regime, mas nem o dr. Salazar nem o seu regime estavam feitos à sua medida. Educado por si mesmo, viajado, anglófilo e demasiado ocupado a ler a sua biblioteca e a sustentar a família, queixava-se ‘da clausura’ – o 25 de Abril despertou nele um breve entusiasmo pela política, mas, desconfiado como os Homem de antanho, suspeitou nuvens negras naquele general que ostentava monóculo e lia sem pronúncia.
O tempo deu-lhe razão mas não o deixou assistir ao segundo ano da democracia; Novembro foi um mês demasiado cruel e a idade (os Homem morrem tarde) pesou de repente sobre os ombros do velho céptico.
Na sua última viagem entre Ponte de Lima e o Porto, num Outono fulgurante e amarelecido, cheio de rumores e de conspirações, profetizou que o velho casarão de família, no Minho, ainda viria a ser-nos útil com a chegada do comunismo. Porém, os Homem foram sempre gente discreta, habituados à hipocrisia que os fez sobreviver às derrotas em silêncio – elas fortaleceram o carácter mas afastaram-nos da ribalta, fazendo-nos assistir ao fim das coisas com a sensação de não participar do espectáculo. Voltados para dentro, ensimesmados e melancólicos em muitas circunstâncias, os Homem foram sempre fiéis às suas velharias, mesmo se estas já pouco significavam para os outros. A Tia Benedita, o meu avô paterno e o velho Doutor Homem, meu pai, foram pilares de um mundo que existiu ao mesmo tempo que o resto das coisas, mas sem se tocarem realmente. Conformados com o andamento do universo, limitaram-se a aprender os nomes dos poderosos sem lhes dedicar afeição e, para manter alguma saúde mental, sem alimentar uma misantropia que parecia inevitável.
Trinta e cinco anos depois, recordo os avisos do céptico da família, preparando-nos para mais uma travessia do deserto como se descrevesse – com Dante – a entrada nos portões do Inferno. A democracia não nos transformou nem nos desiludiu. O Verão de 1975 apanhou grande parte da família em Ponte de Lima, comentando as notícias e preparada para “o pior”. O pior nunca veio e, se viesse, não saberíamos reconhecê-lo. Nas nossas recordações, passadas de geração para geração, “o pior” chegara várias vezes e cá continuávamos.
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Abril 2009
O tempo deu-lhe razão mas não o deixou assistir ao segundo ano da democracia; Novembro foi um mês demasiado cruel e a idade (os Homem morrem tarde) pesou de repente sobre os ombros do velho céptico.
Na sua última viagem entre Ponte de Lima e o Porto, num Outono fulgurante e amarelecido, cheio de rumores e de conspirações, profetizou que o velho casarão de família, no Minho, ainda viria a ser-nos útil com a chegada do comunismo. Porém, os Homem foram sempre gente discreta, habituados à hipocrisia que os fez sobreviver às derrotas em silêncio – elas fortaleceram o carácter mas afastaram-nos da ribalta, fazendo-nos assistir ao fim das coisas com a sensação de não participar do espectáculo. Voltados para dentro, ensimesmados e melancólicos em muitas circunstâncias, os Homem foram sempre fiéis às suas velharias, mesmo se estas já pouco significavam para os outros. A Tia Benedita, o meu avô paterno e o velho Doutor Homem, meu pai, foram pilares de um mundo que existiu ao mesmo tempo que o resto das coisas, mas sem se tocarem realmente. Conformados com o andamento do universo, limitaram-se a aprender os nomes dos poderosos sem lhes dedicar afeição e, para manter alguma saúde mental, sem alimentar uma misantropia que parecia inevitável.
Trinta e cinco anos depois, recordo os avisos do céptico da família, preparando-nos para mais uma travessia do deserto como se descrevesse – com Dante – a entrada nos portões do Inferno. A democracia não nos transformou nem nos desiludiu. O Verão de 1975 apanhou grande parte da família em Ponte de Lima, comentando as notícias e preparada para “o pior”. O pior nunca veio e, se viesse, não saberíamos reconhecê-lo. Nas nossas recordações, passadas de geração para geração, “o pior” chegara várias vezes e cá continuávamos.
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Abril 2009
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