A história de uma traição
O meu avô, que viveu como administrador de quintas do Douro, recolhendo deves e haveres relacionados com vindimas, azeite, amêndoa, pomares e hortas cultivadas à beira do rio. Ele conheceu de perto as consequências da filoxera, uma velharia nos nossos anais de agronomia, e o termo passou para os dicionários de família, geralmente muito conservadora no léxico. “Deu-lhe a filoxera” foi uma expressão muito posterior, rescendendo à tragédia que levou o meu avô a ficar impressionado com a energia de D. Antónia Ferreira, a Ferreirinha.
O comboio do Douro (acompanhei o meu avô apenas duas vezes nessas visitas periódicas) parava na Quinta do Vezúvio (uma das glórias da Ferreirinha) para o deixar, contemplativo, a mirar a margem defronte. O Sr. Hermenegildo, que o perseguia com as suas pastas de contabilidade onde os lucros nunca eram exagerados (sobretudo os proprietários ingleses temiam o optimismo como uma doença mental), julgava que o meu avô sofria de uma paixão comum entre os homens que tinham privado com a senhora – não, ele sabia estabelecer uma distinção entre a beleza feminina e a biografia romanceada de uma mulher do Douro. Simplesmente, nesse mundo em que ainda não havia ‘ié-ié’ mas apareciam notícias sobre o ‘charleston’ (estávamos nos anos quarenta, no fim da guerra), a Ferreirinha era um exemplo. O meu avô coleccionou episódios sobre a personagem e contava-os à mesa para pintar o Douro com as cores do heroísmo. Um dos seus (e nossos) antepassados tinha andado em bolandas com os liberais nos vales e penhascos de Foz Côa e Freixo de Numão – e acabara derrotado. Diante dessas lendas de traição e dedicação, o nome da Ferreirinha era um bálsamo para provar a maldade do Duque de Saldanha e do cartismo.
A minha interpretação é mais romanesca e romanceada, atribuível a muitos anos de más leituras e à melancolia da idade – e limita-se a considerar que quase todos os homens amam as mulheres que os traem. A única vantagem é que o meu avô não conheceu a senhora, limitando-se a elegê-la como figura de uma novela regional, cheia de música de câmara e de perfumes de giesta. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava o tema como assunto de família – ele temia que o seu pai, inebriado pela figura de Guerra Junqueiro (com quem privara e a quem visitava), acabasse a recitar ‘O Melro’ com arrebatamento apaixonado. A sua dedicação amorosa à Ferreirinha sempre o distrairia dos caminhos do abismo. Uma família reaccioária sabe escolher os seus adversários.
O comboio do Douro (acompanhei o meu avô apenas duas vezes nessas visitas periódicas) parava na Quinta do Vezúvio (uma das glórias da Ferreirinha) para o deixar, contemplativo, a mirar a margem defronte. O Sr. Hermenegildo, que o perseguia com as suas pastas de contabilidade onde os lucros nunca eram exagerados (sobretudo os proprietários ingleses temiam o optimismo como uma doença mental), julgava que o meu avô sofria de uma paixão comum entre os homens que tinham privado com a senhora – não, ele sabia estabelecer uma distinção entre a beleza feminina e a biografia romanceada de uma mulher do Douro. Simplesmente, nesse mundo em que ainda não havia ‘ié-ié’ mas apareciam notícias sobre o ‘charleston’ (estávamos nos anos quarenta, no fim da guerra), a Ferreirinha era um exemplo. O meu avô coleccionou episódios sobre a personagem e contava-os à mesa para pintar o Douro com as cores do heroísmo. Um dos seus (e nossos) antepassados tinha andado em bolandas com os liberais nos vales e penhascos de Foz Côa e Freixo de Numão – e acabara derrotado. Diante dessas lendas de traição e dedicação, o nome da Ferreirinha era um bálsamo para provar a maldade do Duque de Saldanha e do cartismo.
A minha interpretação é mais romanesca e romanceada, atribuível a muitos anos de más leituras e à melancolia da idade – e limita-se a considerar que quase todos os homens amam as mulheres que os traem. A única vantagem é que o meu avô não conheceu a senhora, limitando-se a elegê-la como figura de uma novela regional, cheia de música de câmara e de perfumes de giesta. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava o tema como assunto de família – ele temia que o seu pai, inebriado pela figura de Guerra Junqueiro (com quem privara e a quem visitava), acabasse a recitar ‘O Melro’ com arrebatamento apaixonado. A sua dedicação amorosa à Ferreirinha sempre o distrairia dos caminhos do abismo. Uma família reaccioária sabe escolher os seus adversários.
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