A vida dos comboios (2)
O meu avô era um dos grandes frequentadores da ferrovia. Todos os meses ele rumava para o seu vale – o do Douro –, carregado com “os livros”. Ora, “os livros” ocupavam a maior parte da sua bagagem de viajante, embrulhados com o cuidado de um miniaturista, escondendo nas suas páginas os segredos do Vinho do Porto, sua grande paixão. Ao contrário do barão de Forrester, o meu avô não tinha aptidão para o desenho, preferindo traduzir a grandeza do Douro em números – os das vindimas, os das exportações, os das compras e vendas, os da riqueza acumulada e da moderação nos gastos. Administrador de algumas quintas do Douro, correspondente comercial de velhas companhias inglesas, ele funcionava como um barómetro familiar sobre o andamento da economia. Voltava dessas viagens carregado de cestos de fruta, cabazes com relíquias das hortas ribeirinhas – e histórias que, sendo confidenciais, não ultrapassavam nunca o umbral da porta. Ele visitava essas famílias e essas quintas com a cerimónia de um visitante aguardado com impaciência: com a minuciosa contabilidade dessas quintas ele transportava também um módico de civilização a que, nesses vales, só tinham acesso pela epistolografia, pela leitura de jornais velhos de semanas, ou – dramaticamente – pela fuga daquela geografia quase africana no Verão e próxima dos rigores polares quando chegava o Inverno.
O comboio era um instrumento da civilização. O meu avô pertencia ao tempo em que se aguardava um comboio, munido de “bilhete de cais” e com a solenidade da sobrecasaca e do chapéu. Em São Bento reunia-se um conciliábulo de desiludidos com a República e de desconfiados em relação ao Estado Novo. A família, esperta e amadurecida por várias derrotas, evitou sempre compromissos com o folclore da reacção, tanto como com o optimismo dos vários poderes. No cais de São Bento, tudo bem – mas para cá das suas portas, sob o peso dos Clérigos, o negrume dos edifícios mais vetustos dos Aliados ou as fachadas garridas das velhas casas de ‘brasileiros’ da Baixa, o mote era a desconfiança metódica e, em alguns casos, o da ironia sem reembolso.
Já o velho Doutor Homem, meu pai, usou o comboio sem romantismo e sem sarcasmo. Apenas com uma ligeira melancolia sem remorso. A memória das grandes viagens da sua juventude perdia-se em recordações de Paris e de Londres, antes de lhe ter crescido uma família que exigia mais do seu trabalho e menos dos seus talentos para a literatura e para a jovialidade. Ele compreendeu a tempo os sacrifícios que lhe eram pedidos, e que funcionaram como um bálsamo para esses anos.
in Domingo - Correio da Manhã - 5 Abril 2009
O comboio era um instrumento da civilização. O meu avô pertencia ao tempo em que se aguardava um comboio, munido de “bilhete de cais” e com a solenidade da sobrecasaca e do chapéu. Em São Bento reunia-se um conciliábulo de desiludidos com a República e de desconfiados em relação ao Estado Novo. A família, esperta e amadurecida por várias derrotas, evitou sempre compromissos com o folclore da reacção, tanto como com o optimismo dos vários poderes. No cais de São Bento, tudo bem – mas para cá das suas portas, sob o peso dos Clérigos, o negrume dos edifícios mais vetustos dos Aliados ou as fachadas garridas das velhas casas de ‘brasileiros’ da Baixa, o mote era a desconfiança metódica e, em alguns casos, o da ironia sem reembolso.
Já o velho Doutor Homem, meu pai, usou o comboio sem romantismo e sem sarcasmo. Apenas com uma ligeira melancolia sem remorso. A memória das grandes viagens da sua juventude perdia-se em recordações de Paris e de Londres, antes de lhe ter crescido uma família que exigia mais do seu trabalho e menos dos seus talentos para a literatura e para a jovialidade. Ele compreendeu a tempo os sacrifícios que lhe eram pedidos, e que funcionaram como um bálsamo para esses anos.
in Domingo - Correio da Manhã - 5 Abril 2009
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