domingo, março 08, 2009

A melancolia, uma doença

A mais nova das minhas irmãs (somos cinco) acha que eu me recusei a dobrar o século. Ela tem a impressão de que eu pertenço, não a este mundo, mas aos calendários que vão passando de moda. Gosto da imagem e não me ofendo; cada dia que acrescento à minha idade é um dia para agradecer à providência (exagero: eu conto os meses, um a um). Reunidos à minha volta, os meus sobrinhos recordam-me a evidência de que o meu tempo é um empréstimo; eles são jovens, estendem-se na varanda, prometem vir passar o próximo Verão, corrigem-me a ortografia, fazem barulho, trazem filhos que arrancam as folhas dos hibiscos. Agradeço tudo como um suplemento de vida.

A Doutora Filomena Mónica, que acrescentou a vaidade aos meus pecados, e que teve a bondade de me prefaciar um livro, achava-me um velho fidalgo de província – compreendeu depois que se tratava apenas de um velho. Sentado diante dos pinheiros, que me mostram a Primavera muito ao longe, enumero as coisas que me fizeram ser como sou e não encontro nenhuma lógica, nenhum fio, nenhum sentido. Talvez uma recordação – tão infiel como um amor perdido – me empurre para mais um dia, mais um ano. Sobrevivo ao Inverno como uma presença de quem nada se espera, nem a própria presença.

A melancolia é uma doença tão rara como qualquer outra, como insistia o velho Doutor Homem, meu pai. Ele tinha lido o tratado de Robert Burn e conservava o livro (‘The Anatomy of Melancholy’) entre os seus preferidos, embora fosse de leitura fastidiosa e apenas o tivesse folheado ao abandonar a juventude, como uma poção protectora para os dias que estavam para vir. Ter filhos (fui eu o primeiro), manter uma família, alimentar de livros uma biblioteca (seu único luxo da idade adulta), cedo o distraíram para felicidade de todos. Ignoro como realizou os seus sonhos para lá das temporadas de Verão em Ponte de Lima, ouvindo os velhos discos de Anna Moffo – a soprano da família, recordada em discos que já não têm paradeiro – e sublinhando, a lápis, ‘O Minho Pittoresco’. Dona Ester, minha mãe, morreu primeiro e só então soubemos que regressara à “idade da melancolia”, voltado para dentro.

Ao dobrar os meus oitenta e oito anos limito-me a convocar a família para um almoço de maledicência (a nossa especialidade). Do alto do velho eremitério de Moledo, no coração do meu Minho, os meus antepassados vigiam-me como a um infeliz desocupado. A minha sobrinha Maria Luísa diz que sou tão conservador que consigo chegar a esta idade. Talvez seja isso.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Março 2009