Refazer o moral em Abril
Hoje em dia, a nossa Páscoa é sobretudo meteorológica. Deixou há muito de ser religiosa e associa-se mais ao desejo pagão e citadino de uma temperatura tépida, de um Verão que há-de chegar – Abril, o mês mais cruel (o velho Doutor Homem, meu pai, lia o seu Eliot com desconfiança e esforço, mas lia-o como uma herança dos seus imaginários ancestrais ingleses), transformou-se num portal para aquele Estio madrugador, tão querido de Moledo como o céu azul sobre a Ínsua. Reconheço a temporada pelos pinhais. Como botânico, faço o inventário de vasos e rebentos, da explosão de bolbos, da saúde dos hibiscos e, naturalmente – para repetir um ritual –, do aparecimento das flores da giesta nos caminhos que levam à praia.
Conheço esses caminhos por razões médicas, tentando aliviar os pulmões e despertar neles o desejo de continuarem a respirar. O pólen não me impede de procurar as veredas que, perto das dunas, percorro há anos com a teimosia de um velho. A minha sobrinha Maria Luísa obrigou-se a repetir essas caminhadas, julgando que assim ‘refaz o moral’. Ela acredita sinceramente nesta ideia, e declara que um pouco de exercício físico lhe poupa preocupações e conversas domésticas. Concordo, acenando – mas recordo que, em matéria de ‘refazer o moral’, os eremitas preferiam a quietude das montanhas e a imobilidade das grandes pedras onde tinham assentado musgos seculares.
Na verdade, vejo passar – ao sábado e ao domingo – multidões caminhando apressadamente junto da praia, mantendo um ritmo acelerado, braços e pernas a um só ritmo, transpirando e gemendo como um mecanismo a que é preciso emprestar afinações permanentes. As minhas caminhadas são, hoje, as de um velho. Não se destinam a ‘refazer o moral’ mas a impedir que as pernas enferrugem e que as digestões pesem. Aproveito a oportunidade para apreciar como a Primavera chegou a Moledo e se instalou nos pinhais, nas ruelas e nas duas esplanadas onde os meus sobrinhos se recolhem.
Passado o Inverno, as minhas irmãs descem até à beira do mar, menos decididas à sua emigração periódica para as Caraíbas ou para Brasil. O sol de Abril comove toda a gente e anuncia tardes conservadoras cheias de modorra e de grandes projectos. Nesta altura do ano, começam a circular folhas de calendário onde a família assinala as semanas que pretende delapidar em Moledo nos meses de Verão. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, sorri à ideia e ganha novo alento (ela gostaria que em Moledo fosse sempre Verão). As coisas repetem-se. O mundo tem algum sentido, sendo assim.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Abril 2009
Conheço esses caminhos por razões médicas, tentando aliviar os pulmões e despertar neles o desejo de continuarem a respirar. O pólen não me impede de procurar as veredas que, perto das dunas, percorro há anos com a teimosia de um velho. A minha sobrinha Maria Luísa obrigou-se a repetir essas caminhadas, julgando que assim ‘refaz o moral’. Ela acredita sinceramente nesta ideia, e declara que um pouco de exercício físico lhe poupa preocupações e conversas domésticas. Concordo, acenando – mas recordo que, em matéria de ‘refazer o moral’, os eremitas preferiam a quietude das montanhas e a imobilidade das grandes pedras onde tinham assentado musgos seculares.
Na verdade, vejo passar – ao sábado e ao domingo – multidões caminhando apressadamente junto da praia, mantendo um ritmo acelerado, braços e pernas a um só ritmo, transpirando e gemendo como um mecanismo a que é preciso emprestar afinações permanentes. As minhas caminhadas são, hoje, as de um velho. Não se destinam a ‘refazer o moral’ mas a impedir que as pernas enferrugem e que as digestões pesem. Aproveito a oportunidade para apreciar como a Primavera chegou a Moledo e se instalou nos pinhais, nas ruelas e nas duas esplanadas onde os meus sobrinhos se recolhem.
Passado o Inverno, as minhas irmãs descem até à beira do mar, menos decididas à sua emigração periódica para as Caraíbas ou para Brasil. O sol de Abril comove toda a gente e anuncia tardes conservadoras cheias de modorra e de grandes projectos. Nesta altura do ano, começam a circular folhas de calendário onde a família assinala as semanas que pretende delapidar em Moledo nos meses de Verão. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, sorri à ideia e ganha novo alento (ela gostaria que em Moledo fosse sempre Verão). As coisas repetem-se. O mundo tem algum sentido, sendo assim.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Abril 2009
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