O clamor do Verão minhoto
A Tia Benedita, matriarca da família e responsável pela sua sobrevivência no interior do redil do velho miguelismo minhoto, achava que o Verão trazia consigo a devassidão e a pouca-vergonha. Já o disse de outras vezes e com palavras diferentes – mas ela não conhecia a Primavera.
Ela amava o Verão, as romarias, as procissões, as bandas de música, os foguetes de arraial e as missas campais. Era um resto do seu Minho que ali se organizava para prometer às novas gerações que alguma coisa permanecia intocável. Simplesmente, a Tia Benedita tinha o género humano em muito má conta e atribuía-lhe uma interminável série de pecados e de formas de sucumbir às tentações do reino animal, através da exiguidade das roupas, das sandálias abertas, dos cabelos soltos, dos banhos do rio – e do sexo extramuros, ou seja, do pecado propriamente dito.
O velho Doutor Homem, meu pai, deixava que ela mantivesse um módico de indignação. Ele achava (com toda a razão) que o seu génio se manteria activo muito mais tempo se tivesse oportunidade de protestar contra o mau andamento das coisas do Mundo; a contrariedade, em certos espíritos, é um bálsamo para o corpo e, por extensão, funciona como um alimento para o que na minha juventude se designava por 'alma'.
Mas ela, pobre Tia, não conhecia a Primavera. O Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos, pelo contrário, era íntimo – e mal começavam a aparecer, por detrás das montanhas de Paredes de Coura e dos Arcos, aqueles tons alaranjados dos crepúsculos que anunciavam calores precoces, sentava-se diante dos planisférios, imaginando viagens solitárias em que se perderia no meio de aventuras que não confessaria à Senhora, alcantilada em Ponte de Lima para agora se defender da imoralidade, como antes se protegia de Afonso Costa e da Carbonária, dos republicanos, do bolchevismo – dos mesmíssimos muros de onde as clavinas soaram, antigamente, para afastar as milícias liberais que vinham de Viana, entusiasmadas com a campanha de Charles John Napier, o general inglês que tinha entretanto adoptado o ridículo pseudónimo de Carlos de Ponza, com ressonâncias espanholas e valdevinas.
O Tio Alberto suspirava e suspirava – até acabar por partir, de Campanhã, para regressar dois meses depois, cumprida a sua tarefa civilizadora. Ao regressar perguntava, à entrada dos portões de Ponte de Lima, como se o velho casarão lhe lembrasse a inclemência do clima: 'E então o Verão?' A Tia Benedita limitava-se a responder, conformada: 'Estão aí as vindimas.'
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Março 2009
Ela amava o Verão, as romarias, as procissões, as bandas de música, os foguetes de arraial e as missas campais. Era um resto do seu Minho que ali se organizava para prometer às novas gerações que alguma coisa permanecia intocável. Simplesmente, a Tia Benedita tinha o género humano em muito má conta e atribuía-lhe uma interminável série de pecados e de formas de sucumbir às tentações do reino animal, através da exiguidade das roupas, das sandálias abertas, dos cabelos soltos, dos banhos do rio – e do sexo extramuros, ou seja, do pecado propriamente dito.
O velho Doutor Homem, meu pai, deixava que ela mantivesse um módico de indignação. Ele achava (com toda a razão) que o seu génio se manteria activo muito mais tempo se tivesse oportunidade de protestar contra o mau andamento das coisas do Mundo; a contrariedade, em certos espíritos, é um bálsamo para o corpo e, por extensão, funciona como um alimento para o que na minha juventude se designava por 'alma'.
Mas ela, pobre Tia, não conhecia a Primavera. O Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos, pelo contrário, era íntimo – e mal começavam a aparecer, por detrás das montanhas de Paredes de Coura e dos Arcos, aqueles tons alaranjados dos crepúsculos que anunciavam calores precoces, sentava-se diante dos planisférios, imaginando viagens solitárias em que se perderia no meio de aventuras que não confessaria à Senhora, alcantilada em Ponte de Lima para agora se defender da imoralidade, como antes se protegia de Afonso Costa e da Carbonária, dos republicanos, do bolchevismo – dos mesmíssimos muros de onde as clavinas soaram, antigamente, para afastar as milícias liberais que vinham de Viana, entusiasmadas com a campanha de Charles John Napier, o general inglês que tinha entretanto adoptado o ridículo pseudónimo de Carlos de Ponza, com ressonâncias espanholas e valdevinas.
O Tio Alberto suspirava e suspirava – até acabar por partir, de Campanhã, para regressar dois meses depois, cumprida a sua tarefa civilizadora. Ao regressar perguntava, à entrada dos portões de Ponte de Lima, como se o velho casarão lhe lembrasse a inclemência do clima: 'E então o Verão?' A Tia Benedita limitava-se a responder, conformada: 'Estão aí as vindimas.'
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Março 2009
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