A vida dos comboios (1)
Nos anos sessenta mal via despontar o leve torpor da Primavera, o Tio Alberto viajava. A sua condição de bibliófilo de S. Pedro dos Arcos, aventureiro, botânico, jurista e gastrónomo, deixava-lhe tempo para esses interlúdios na pacatez da sua existência conhecida. Eram viagens longas na maior parte das vezes, com fundo romântico quase sempre, destinadas a coroar – como recompensa – a sua vida de celibatário e hedonista. Recomposto e tocado pela incandescência do cosmopolitismo, ele regressava a S. Pedro dos Arcos e às suas plantas, às estantes arrumadas, aos pareceres e trabalhos do escritório, aos grandes passeios em redor da lagoa de Bertiandos, às caminhadas de Moledo (foi ele que me convenceu, em tempos, a retirar-me para Moledo em vez de ficar, civilizado, a tratar das coronárias no Porto). Para trás deixava um mundo que não era apenas cosmopolita, cheio de cidades reais e de encontros suaves e doces – era também movimentado e feito de linhas de comboio. Ele viajou no Expresso do Oriente e no Transsiberiano, percorreu as linhas que atravessavam as montanhas da Europa quando a Europa tinha montanhas, acompanhou o destino dos que viajavam de Lisboa para Paris no Sud Express ronceiro, sujo e recordista de atrasos.
Teve sorte. Foi um privilegiado, certamente. Onde outros chegavam a Paris pela amarga via da emigração e da pobreza, procurando sustento e desejando uma fortuna que os libertasse da miséria, o Tio Alberto descia em Austerlitz para visitar aquele mundo que nunca chegaria a Portugal. Nunca perdoou ao dr. Salazar essa amargura e irritava-se bastante com os portugueses, que o mereciam.
Seja como for, essas viagens de comboio eram longamente preparadas e necessitavam de entrevistas prévias numa agência de viagens. De Lisboa para Paris. Do Porto para Lisboa e para Madrid – e uma viagem para Barcelona antes de seguir para Paris, de onde, certa vez – em busca de um amor que durou mais do que a sua vida – tomou a direcção do Cáspio por caminhos até hoje ignorados pela família. Na monumental herança de papéis que me coube recolher da sua casa de S. Pedro dos Arcos, depois da sua morte, encontrei esses registos de bilhetes ferroviários, carimbos de fronteiras e de estações onde, de noite, se esperava uma ligação rara e descuidada.
Esse mundo terminou. Os comboios que atravessavam a Pátria e os que riscavam – como um cometa – o mapa da Europa são hoje recordações vagas para os meus sobrinhos. Eles discutem o baixo preço dos bilhetes de avião. Ignoram como o mundo foi sendo construído.
in Domingo - Correio da Manhã - 29 Março 2009
Teve sorte. Foi um privilegiado, certamente. Onde outros chegavam a Paris pela amarga via da emigração e da pobreza, procurando sustento e desejando uma fortuna que os libertasse da miséria, o Tio Alberto descia em Austerlitz para visitar aquele mundo que nunca chegaria a Portugal. Nunca perdoou ao dr. Salazar essa amargura e irritava-se bastante com os portugueses, que o mereciam.
Seja como for, essas viagens de comboio eram longamente preparadas e necessitavam de entrevistas prévias numa agência de viagens. De Lisboa para Paris. Do Porto para Lisboa e para Madrid – e uma viagem para Barcelona antes de seguir para Paris, de onde, certa vez – em busca de um amor que durou mais do que a sua vida – tomou a direcção do Cáspio por caminhos até hoje ignorados pela família. Na monumental herança de papéis que me coube recolher da sua casa de S. Pedro dos Arcos, depois da sua morte, encontrei esses registos de bilhetes ferroviários, carimbos de fronteiras e de estações onde, de noite, se esperava uma ligação rara e descuidada.
Esse mundo terminou. Os comboios que atravessavam a Pátria e os que riscavam – como um cometa – o mapa da Europa são hoje recordações vagas para os meus sobrinhos. Eles discutem o baixo preço dos bilhetes de avião. Ignoram como o mundo foi sendo construído.
in Domingo - Correio da Manhã - 29 Março 2009
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