A primeira geada de Inverno
O velho Doutor Homem, meu pai, costumava relembrar que o senhor Dom Miguel deixara os seus bens a fim de pagar dívidas de guerra e o soldo dos seus militares. Alguns deles quebraram as espadas na penumbra de Évora Monte e aguardaram que o destino não lhes fosse pesado demais – como foi, incendiado pelo desejo de vingança. O velho causídico via nisso um gesto de nobreza, já raro no seu tempo e muito mais hoje em dia, quando dinheiro e política andam de mãos dadas para provar a natureza do género humano, que é fraca e cheia de tentações a que não sabe como resistir.
A minha sobrinha Maria Luísa (a voz progressista desta família minhota), que já achou estes assuntos uma velharia, vê neles, agora, uma certa utilidade. Ainda que não o confesse, ela nutre alguma ternura pelo velho retrato do Príncipe pendurado ao fundo do corredor da casa de Ponte de Lima, o que eu atribuo à desilusão que chegou cedo ao seu progressismo, alimentado de combates tentadores que iam da liberalização do haxixe à quebra do sigilo bancário. Depois de uma fase de pedagogias modernas, os seus filhos voltaram – no Verão passado – a decorar a tabuada e a declinar verbos segundo as velhas regras. Atribuir alguma espécie de ligação entre a ternura pelo retrato do Príncipe e a cantilena repetitiva e pouco melodiosa da tabuada de multiplicar é certamente exagero ideológico; mas alguma coisa haverá. O desejo de alguma ordem no mundo é uma coisa conservadora e muito útil. Em primeiro lugar porque se chega à conclusão de que o mundo é imperfeito; depois, porque nos leva a optar pelo mal menor em vez de procurar estabelecer a perfeição a todo o custo, onde nada falha, nada inquieta e nada falta.
Nestes primeiros dias de frio inclemente – uma primeira geada poisou sobre os pinhais de Moledo – as reflexões de um velho começam por aceitar a meteorologia e acabam a perder-se em teoria política. Olho para os meus livros na estante. Eles guardam vários anos de desilusões e muitas décadas de arrumações inúteis; tentei dar-lhes uma ordem para que a minha vida se tornasse mais confortável. No andar de baixo (é domingo) os filhos de Maria Luísa soletram e rabiscam. Da cozinha vem o aroma que lembra o leve torpor da família reunida à volta da mesa. O jardim mostra as feridas das primeira podas de hidrângeas e magnólias. Se estas coisas se perdessem, eu teria de – à semelhança do bravos soldados derrotados em Évora Monte – quebrar a minha espada.
in Domingo - Correio da Manhã - 30 Novembro 2008
A minha sobrinha Maria Luísa (a voz progressista desta família minhota), que já achou estes assuntos uma velharia, vê neles, agora, uma certa utilidade. Ainda que não o confesse, ela nutre alguma ternura pelo velho retrato do Príncipe pendurado ao fundo do corredor da casa de Ponte de Lima, o que eu atribuo à desilusão que chegou cedo ao seu progressismo, alimentado de combates tentadores que iam da liberalização do haxixe à quebra do sigilo bancário. Depois de uma fase de pedagogias modernas, os seus filhos voltaram – no Verão passado – a decorar a tabuada e a declinar verbos segundo as velhas regras. Atribuir alguma espécie de ligação entre a ternura pelo retrato do Príncipe e a cantilena repetitiva e pouco melodiosa da tabuada de multiplicar é certamente exagero ideológico; mas alguma coisa haverá. O desejo de alguma ordem no mundo é uma coisa conservadora e muito útil. Em primeiro lugar porque se chega à conclusão de que o mundo é imperfeito; depois, porque nos leva a optar pelo mal menor em vez de procurar estabelecer a perfeição a todo o custo, onde nada falha, nada inquieta e nada falta.
Nestes primeiros dias de frio inclemente – uma primeira geada poisou sobre os pinhais de Moledo – as reflexões de um velho começam por aceitar a meteorologia e acabam a perder-se em teoria política. Olho para os meus livros na estante. Eles guardam vários anos de desilusões e muitas décadas de arrumações inúteis; tentei dar-lhes uma ordem para que a minha vida se tornasse mais confortável. No andar de baixo (é domingo) os filhos de Maria Luísa soletram e rabiscam. Da cozinha vem o aroma que lembra o leve torpor da família reunida à volta da mesa. O jardim mostra as feridas das primeira podas de hidrângeas e magnólias. Se estas coisas se perdessem, eu teria de – à semelhança do bravos soldados derrotados em Évora Monte – quebrar a minha espada.
in Domingo - Correio da Manhã - 30 Novembro 2008
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